sábado, 13 de outubro de 2012

E depois, o dinheiro para as pilhas?

                                                                                 

No meu trabalho não tenho só dias agitados e coisas tristes. A pressão, as dificuldades e o instinto de sobrevivência levam a que o espírito de entreajuda, a camaradagem e as gargalhadas estejam sempre presentes, e que os tempo mortos sejam passados entre algum descanso e brincadeiras permanentes. Quando não temos que fazer inventamos, damos largas à imaginação e fazemos trinta por uma linha...

A Marta é minha colega de equipa, a alcunha dela é Lsd porque é alucinada, tem um ar divertido, puro, meio doido, desbocado, repleto de palavras fáceis que lhe saem pela boca fora em catadupa sem pensar muito bem no que diz. Por ser assim já sofreu na pele alguns dissabores, e olhares maliciosos.

A nossa televisão da sala de pausa é um cangalho podre de velho, quadrada, pesada, antiga, pendurada num suporte no tecto, bem no alto, já sem comando à distância e em que a tonalidade dos intervenientes no ecrã é um verde Kiwi, meio extra terrestre dando um ar intrigante e extra sensorial a qualquer programa mais normalzinho que por ali apareça. Como acessório imprescindível temos um cabo de vassoura que serve para mudar os canais e ajustar o som quando é preciso ouvir alguma coisa... muito raramente, porque pouca coisa tem interesse nos canais portugueses para ser ouvida.

Esta semana a nossa máquina infernal morreu. Kaput! A malta que já anda triste com os cortes, a troika e à beira da depressão, ficou revoltada com a ausência da fada sininho das manhãs da tvi, da mulher eco da Sic, e da Sô Dona Fatinha do programa que ajuda pessoas que têm estofo para chorarem em publico e exporem-se mais do que o necessário para terem uma ajuda, e ainda a magia dos programas a altas horas da noite que terminam sempre numa descida única e exclusiva ao mundo maravilhoso dos milagres das televendas.

Como há vários dias que não há televisão o chefe de equipa de banco resolveu fazer entre todos os funcionários do serviço uma recolha simbólica de verbas para podermos comprar uma tv nova...assim estipulou-se 5 euros a cada um. Ontem passou pela nossa sala de pausa na passagem de turno para recolher o dinheiro dos elementos presentes, todos tirámos a notita de 5 euros e demos, vai a Lsd e pumba dá uma nota de 10 euros.

Dr X- São só 5 euros, não são 10.
Lsd- Mas eu quero dar dez... porque de certeza que do dinheiro desta gente toda ainda vai sobrar algum, e  com o que sobrar, compra um vibrador aqui para o serviço. Nem precisa ser uma coisa muito especial, secção de pequenos electrodomésticos, linha branca... se quiser até vou consigo... mas olhe que era uma excelente ideia para ter aí numa gaveta.
Dr X- Ai Marta, lá está você com as suas coisas...Disparate.
Lsd- Disparate nada, juro-lhe que melhorava em muito a qualidade dos serviços prestados e o humor das equipas de trabalho, acabavam-se as que não pinam e as que mal pinam, e se os machos ficassem tristes e com inveja não havia problema, aqui não há desigualdade e também podiam experimentar. E se não percebeu bem o que é pinar porque não deve ser do seu tempo é truca truca, aquela coisa que até os bichinhos gostam...
Dr X-  a rir... Valha-me Deus do que te lembras!.
Lsd- Vá esqueça, dê cá o troco... ia haver guerra por causa do dinheiro para as pilhas.

Toda a gente a rir...
Omg Lsd, só tu rapariga.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A brincadeira envolve policias mas substituimos os ladrões por algo mais divertido e menos perigoso já agora...


                                                                         

Um dos nossos agentes o R, do posto do hospital foi ao nosso serviço obter informações de um sinistrado que tinha entrado algum tempo antes e que tinha seguido para o bloco operatório quase de imediato. Era hora do lanche e estávamos entretidos à volta da mesa rodeados de chá quentinho, torradas acabadinhas de fazer e uma tarde de maçã feita pelo Duarte que é um excelente cozinheiro e traz uns petiscos para as meninas da equipa bem bons. Adoça-nos para ficarmos ainda mais doces, como ele diz. Somos malta simpática e tratamos bem quem nos visita, oferecemos ao R uma fatia de tarde e ele acabou por ficar por ali algum tempo na conversa connosco.

Entre os vários assuntos falou do que sabe fazer, de rusgas, detenções, algemar pessoas e mais coisas que para nós são novidade mas que para ele são o dia a dia e fazem parte da rotina diária. No meio da conversa a minha colega Judy saí-se com esta frase: nunca fui algemada deve ser uma sensação gira. Ele levanta-se rápido parecia que tinha uma mola, leva uma mão ao cinto saca as algemas, com a outra dá-lhe um ligeiro encontrão, uma riviravolta ao braço direito, com a mão onde tem as algemas agarra-lhe o outro braço leva-o atrás e tungas afinfa-lhe as algemas... tudo isto em segundos, só com uma mão e nós boaquiabertos a olhar e a gozar o espectáculo.

Diz o R - Querias experimentar a sensação que tal?
Judy - Ó pah tira-me lá isto que já me estão a doer os pulsos, esta merda não parece mas magoa.
R - Não te magoei. Era só para perceberes a sensação. Tiro-te já isso pera...Leva a mão ao cinto, fica encarnado que nem um tomate e diz, porra não tenho a chave. Não acredito nisto.
Judy - Tás a brincar não estás? Quem não acredita nisto sou eu... Isto não me está a acontecer. Tira-me já esta porcaria ou passo-me, não vou ficar assim mais tempo, tira-me isto.

Claro está que as chaves não existiam mesmo e foi preciso chamar via rádio o carro patrulha para vir ao hospital trazer as chaves das algemas...o hilariante foi mesmo ter que sentar a Judy numa cadeira para disfarçar as mãos atrás das costas, acalmá-la enquanto esperava uns bons 15 minutos que chegassem as chaves, e depois a cara de gozo dos boys agentes ao bom estilo mafioso (logo 4) quando chegaram ao nosso serviço, entraram por ali dentro de sorriso de orelha a orelha, a gozarem o prato e a dizerem com o ar mais sério do mundo e em voz alta...
                                                           
Quem é a enfermeira detida?

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Geração Wild Child...


                                                                           
Madalena é jovem, demasiado jovem, e muito bonita, embora lhe reconheça os traços marcados dos excessos. Tem rugas profundas à volta dos olhos, olheiras roxas de cansaço, e olhos encovados das noites mal dormidas. A pele está desidratada, o corpo é demasiado magro, quase anoréctico, enfiado numas calças de ganga justas, slim, e num top curto com brilhantes, com uma estampagem pirosa e uns brilhantes de gosto ainda mais duvidoso. Parece que se usa. A roupa é cara, e de uma marca famosa. Com assinatura. 

Chegou até nós por queda de uma varanda, numa festa hiper chique, numa moradia de um bairro in da cidade. Apresenta traumatismos vários ao nível dos membros inferiores e ligeiras escoriações. Nada de demasiado grave aparentemente. Mas o pior está no resto. Agitada, com arritmias cardíacas, taquicardia extrema, aumento da pressão arterial e da frequência respiratória. As mãos tremem-lhe ligeiramente, Madalena disfarça, e pede insistentemente água. Madalena não podes beber ainda água, espera um pouco, só um bocadinho...

A Madalena não sabe, mas todos nós já percebemos que apresenta sintomas que todos nós bem conhecemos de ingestão de álcool e cocaína, ou metilenodioximetanfetamina / mdma vulgo ecstasy. Caso não se consiga reduzir rapidamente a concentração de alcalóides, a coisa vai ficar feia. Está no limite da linha de não retorno, e a incoerência no discurso e a midriase já visível nas pupilas são um indicador de toxicidade grave.

Este tipo de drogas são chamadas "Party Drugs" porque provocam uma sensação de euforia, bem estar, aumento da sociabilização e extroversão, estado de alerta continuo, aumentam a disposição para o sexo, inibem o sono, e aumentam inclusive a resistência física... Claro que tudo isto apenas durante umas horas, a seguir vêm os momentos psicóticos, alucinógenicos, aumento da temperatura corporal, perda de memória, ataques de pânico, de ansiedade, depressão, náuseas, falta de apetite, vertigens, câimbras, desmaios... e o temível vicio. 

O telemóvel dela em cima da bancada toca incessantemente. Ao som de Katy Perry e California Girls no visor do iPhone vão aparecendo vários nomes que deduzo sejam amigos da Madalena, insistentemente a ligarem, presumo que a querer saber dela, um após outro, mas ninguém atende. Hoje já não há mais parties, nem long drinks, nem dance music, nem bright lights, nem crazy nights, nem best friends forever, nem sniffs, nem linhas, nem pastilhas, nem hard hot sex, nem excessos. Hoje a Madalena não aceita mais convites e vai dormir cedo.

Quando sair do coma, talvez a vida possa voltar ao normal... Talvez.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Como uma boa pronúncia faz toda a diferença...



                                                                             
                                                                                  
Sentada na triagem olho especada para o nome que me aparece em primeiro lugar no monitor. Raios, como é que vou chamar isto. Hesito...preciso chamar o doente, mas o nome é tão estranho que me faz desatar a rir. Leio outra vez, só para ter a certeza que vi bem. Uma só palavra sem apelido, apenas o nome próprio. Fodemane, escrito desta forma.

Leio baixinho Fode Mané, não consigo parar de rir, já tenho apanhado nomes muito estranhos uma Maria das Pernas Tortas, uma Alzira Rata Larguinha, o Sr. Pinote, o Sr. PimPim mas caraças não vou dizer isto em voz alta no altifalante geral de toda a urgência, opto por um sonoro: Sr Mané à triagem. De repente abre-se a cortina e aparece uma alminha de dedo no ar a dizer Fudimani, Fudimani sou eu! Exactamente assim... e eu engulo o riso.

No dia seguinte, e ainda não recuperada de nomes estranhos recebo uma paciente de nome Mohmoh na sala de tratamentos para fazer um injectável, uma senhora muito ansiosa, cheia de tremeliques e o diabo a a quatro e com pavor de agulhas. Começo por falar com ela calmamente e por lhe explicar o procedimento e re béu béu e quando já estou a vias de facto de lhe espetar a agulha no dito cujo, ela mexe-se e eu digo bem alto: Quieta Múmú não mexa! Oiço do outro lado um colega meu dizer:  Múmú é uma vaca!
O que é que estás a fazer a uma vaca?

Pronto aí estraguei tudo, não consegui conter as gargalhadas....
Mas em ambos os casos posso confirmar que a pronúncia faz toda a diferença e que afinal de contas é tudo uma questão de sotaque.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Dias difíceis...




                                                                            
Pois estou nos dias difíceis, esses  mesmo que estão a pensar e nos outros também. Toda a gente sabe que a vida não é fácil, ouvimos toda a gente dizer que isto só piora não melhora, e que a crise vai arruinar a economia e o já miserável país, mas sobretudo a boa disposição e alegria de um povo. Só oiço gente a lamentar-se, só oiço gente zangada, de mal com a vida, em sofrimento pelo que perdeu, pelo que teve e já não tem, pelo que quer ter e não consegue, pela vida difícil que têm.Quase todos reclamam da sorte, aliás da falta dela... e eu não sou excepção, ah pois, eu também.

Hoje falo do Ricardo... O Ricardo é um politraumatizado trazido pelo Inem de uma das praias da nossa costa por traumatismo grave da coluna cervical com possível luxação ao nível de C5-C6 após mergulho de uma rocha, apresenta perda de sensibilidade e deficit motor acentuado dos membros inferiores. Depois de sabermos o diagnóstico de entrada esperámos todos para que o impossível aconteça, o milagre se dê, e o Ricardo não fique Paraplégico, ou pior ainda Tetraplégico.

Tem uns olhos castanhos esverdeados lindos, luminosos, brilhantes, a pele bronzeada da praia por muito sol, demasiado - penso para mim que fujo do sol - tem uns cabelos loiros pelo ombro em total desalinho, vem de calções de banho e traz o cheiro a sal e a mar na pele. Na maca dos bombeiros observo-lhe o olhar doce, meio apavorado de um homem menino que espera o pior deitado num plano duro, imobilizado numa coquille e cheio de dores. Leio-o-lhe o medo, toco-lhe na mão, acompanho o gesto com um sorriso sincero e acrescento.... 
Calma Ricardo, vai correr tudo bem.

Do lado de cá, na consola da tac oiço o veredicto do destino do Ricardo, duro, sem direito a argumentação, sem sequer segunda escolha, ou melhor opção. Separados por um vidro observo os monitores, as linhas coloridas que oscilam num ecrã, e o ar sofrido mas esperançado do Ricardo. E dou por mim perdida em pensamentos de quem reclama de tudo, que vive na insatisfação constante pelo que lhe falta, que tem duas pernas para correr pela praia, saúde para viver, família e amigos para amar, e responde ao habitual: Como vai a vida?
Vamos indo, mais ou menos. 

Para o Ricardo vai ser sempre menos. Todos os dias. E eu que já pouco reclamava da minha vida aprendo mais uma lição, nunca devemos reclamar de barriga cheia, nada é mais importante que a saúde, nada é insubstituível excepto a vida.... e tudo resto são tretas.

domingo, 26 de agosto de 2012

Antes de... Leiam o manual de instruções e desistam de ser criativos.


                                                                         


Hoje fiz noite, e em apenas 8 horas de trabalho tivemos 4 tentativas de suicídio, sim verdade, o número não está errado, e é assustador mesmo. Cada vez há mais gente a tentar suicidar-se e ou é impressão minha ou as pessoas estão mesmo a esforçar-se para tentar morrer, o pior é que têm ideias de merda, que não lembram ao menino Jesus. Então beber 1 litro de aguarrás mata alguém? Quanto muito queima todo o tubo digestivo, deteriora as vias aéreas e dá um sofrimento do catano, mas morrer que era bom, nem pensar.

Depois existe outro problema....

Atirarem-se de um primeiro andar não resulta, e não é às vezes que não resulta, é mesmo SEMPRE.
Partem as pernítas, fracturam os calcaneos, e lixam a bacia. Na pior das hipóteses podem fazer uma fractura de coluna e ficam paraplégicos, ora para quem quer mesmo morrer isso não é solução.

IDEIAS DE MERDA...
  • Atirarem-se para a linha do comboio - NUNCA, raramente morrem e ficam sem braços e pernas.
  • Tomarem comprimidos com bebidas - NUNCA, uma lavagem ao estômago e quanto muito ficam a babar-se e de fralda.
  • Cortarem os pulsos - NUNCA, não resulta e francamente deita muito sangue e suja tudo.Depois dá uma trabalheira a limpar.
  • Abrirem o gás - NUNCA, resulta menos vezes do que possam pensar e sinceramente acho mal que quem se quer matar por opção obrigue quem não queira a ir também por simpatia. É muito egoísta, e fica mal.
  • Atirarem-se da varanda tipo R/C ou 1º andar só revela estupidez. Nunca morrem e ficam sempre com alguma coisita partida.Quanto muito dá baixa por 3 meses.
  • Armas de fogo - NUNCA. Só se tiverem mesmo pontaria, saibam que quando apontamos para nós no milíonésimo de segundo antes o nosso instinto de sobrevivência vem ao de cima, e o cano da arma desvia-se. Ficam sem escalpe, cegos, surdos, e com alguma sorte em coma mas não morrem....Ficam a dar despesa ao estado, aos contribuintes e a chatear a família que sofre de morte por vos ver assim.
AGORA IDEIAS MESMO BOAS.....
  • Atirarem-se do Cristo Rei, Ponte Sobre o Tejo, ou sítios mais altos de preferência. À falta de melhor tudo o que seja para cima de um 12º andar já deve chegar...Menos nunca, só se magoam.
  • Aquelas merdas de overdoses e afins também resultam, mas é preciso saber onde comprar. Informem-se primeiro. O material tem de ser de primeira qualidade e bater mesmo. Pó de gesso e farinha Maizena só entopem as veias, dão suores e incontinência de esfincteres.
  • Raticidas, Herbicidas e mais mata-ratos resultam. mas agora as Agrorurais exigem identificação na compra desses produtos e ficas automaticamente referenciado. Tens de ser rápido e não hesitar. Comprar e pimba tomar logo. Preparem-se para uma morte atroz e um sofrimento horrível.( só quem já assistiu sabe a agonia que é ).
  • Boca do Inferno, Cabo Espichel, Ribamar e Ponta de Sagres são sítios bons. Resultam bem, levas com  uma ondas e ainda vês a paisagem que é gira. O perfeito dois em um.
  • Beber muito, acelerar bastante, sempre acima cima dos 150 km/h e se possível não usar cinto de segurança também resulta, mas primeiro vejam se não acertam em ninguém.

Malta é pá... por favor.... não se tentem matar... isto de preferência, até porque a vida é bela e vale a pena ser vivida, há sempre muito a descobrir e cada dia é um novo dia repleto da possibilidade de coisas boas, mas se insistirem não se esqueçam, leiam primeiro o manual de instruções e escolham ideias mesmo boas.

                                                                     

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O gajo do machado...



É saudável rir das coisas mais sinistras da vida, inclusive da morte. O riso é um tónico, um alívio, uma pausa que permite atenuar a dor.
Charlie Chaplin


No primeiro dia de trabalho dou por mim a rir como há muito tempo já não ria. Confesso que já tinha saudades, do espírito de equipa, da amizade, da entreajuda entre nós. Adoro os meus colegas de trabalho, a cumplicidade só nossa nos pequenos gestos disfarçados que dizem tudo, nas trocas de olhares dissimuladas que só nós entendemos, nos silêncios onde tudo se diz sem uma única palavra, ou apenas no levantar de sobrancelhas quando algum de nós diz alto aquilo que não deve.

Hoje o Dr MM foi ao cesto dos socos à procura de uns socos 44, e não encontrou nenhuns completos. Restavam apenas 3 pares de socos que lhe serviam, mas só com pés esquerdos, mas o MM que é um gajo despachado e divertido não se atrapalhou, toca de calçar os dois socos esquerdos e fazer-se à vida. A figura era hilariante parecia um palhaço com as biqueiras das socas com o ângulo ao contrário, e por onde passava toda a gente ingenuamente lhe dizia: Ó Dr. MM tem dois pés esquerdos, ao que ele respondia: acabei de descobrir que por aqui há mais gente com pés direitos que esquerdos, gosto de fazer a diferença.
E lá andou ele as12 horas de banco com dois left feet, e nada raladinho.

Mais tarde...

Recebemos um poli traumatizado por acidente de viação, embate a baixa velocidade, consciente, orientado, com escassas escoriações na face e membros inferiores, e sem lesões graves aparentes, que após realizar exames complementares de diagnóstico, protocolo de rx e tc de cranio, se encontrava deitado na sala de emergência a aguardar observação pela ortopedia e pela cirurgia maxilo-facial. Enquanto os doentes aguardam pelos cirurgiões, nós senta-mo-nos na nossa área de trabalho, observamos o doente, os monitores e falamos claro está... beca beca entre nós... nada de novo pois.

Hoje o tema da conversa era a separação de bens do meu colega Duarte de quem já falei aqui, e que  apanhou a namorada com quem vivia em plena acção de pinanço com outro. O Duarte na altura saiu de casa, da casa que era dele e não trouxe nada... apenas a roupa que tinha vestida e o carro que utilizava. Já passou um ano e gradualmente o Duarte tem tentado reaver aquilo que era dele, desde objectos pessoais, e coisas que comprou fruto do seu trabalho e dos muito turnos que faz.

Dizia o Duarte em conversa inflamada: um dia passo-me da marmita, salto o terraço, entro lá em casa, levo um machado, retraço-lhe a mobília toda e deixo-lhe uma pilha de paus para se aquecer no inverno. De repente quando olhamos para o lado vê-mos o doente nu, semi sentado na maca de olhos esbugalhados a olhar para todos nós, de dedo no ar...Você não faça isso, nem sabe no que se mete, olhe que eu sou juiz e quem o avisa seu amigo é... fica sem mobília e ainda vai preso.

Gargalhada geral....

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A amizade e o efeito borboleta...


                                                                           

Tenho à minha frente o Tiago, tem 28 anos e é páraquedista de profissão e instrutor de saltos nas horas vagas. Salta porque gosta, porque quer, porque adora aventura e já não vive sem a adrenalina dos saltos. Nunca pára, faz escalada, faz rappel invertido à séria porque o normal é para meninos, faz Bungee Jumping, parapente e dá umas aulas sobre tudo isto numa escola de desportos radicais.

Hoje algo correu mal, não me perguntem o quê que percebo peva de pára-quedas e parapente e afins, aliás qualquer coisa que voe mais alto que dois metros do solo para mim é suicídio Voar é para as aves, ou de uma forma mais sofisticada e tecnológica para os aviões, todas as outras formas de altos voos intimidam-me.

O Tiago chegou de helitransporte, apresenta fracturas múltiplas de ambas as pernas, fractura da bacia, da coluna lombar ao nível de L1, hemorragias internas, hemotórax e rotura de uma víscera oca. O prognóstico é muito reservado, insistimos, persistimos e não desistimos. Não pares Tiago. Drenagem torácica bilateral, punção abdominal positiva, colocação de catéter venoso central, linha arterial, e mais...e mais... Não pares Tiago.

De repente a frequência cardíaca baixa, os valores tensionais descem a valores limite e o que não queríamos mesmo acontece. Puxo com o pé o degrau da reanimação, debruço-me no tórax do Tiago, não morras, caraças não te atrevas...um, dois, três, quatro, cinco, pausa, e uma vez e outra vez, dezenas de vezes. Dói -me tanto os braços, as articulações dos punhos, os cotovelos, os ombros, preciso parar e não posso parar.

Grito pelo Pedro e peço-lhe que me substitua, tudo isto dito num agora é a tua vez, mostra para que servem esses músculos.Tenho os braços do cotovelo para baixo dormentes, os dedos inchados, a roupa interior colada ao corpo, a farda ensopada de suor nas costas, sinto o cheiro do meu corpo, cheiro mal...

Muito tempo depois, muito esforço depois, tudo foi em vão. Podia dizer muita coisa, podia dizer que no fim de hora e meia nisto e sem resultados, todos estávamos cansados e com os olhos cheios de lágrimas.Porque parece fácil ao longo dos anos, eu pelo menos acreditava que sim, que o tempo e o hábito me iam dando traquejo e maior capacidade para lidar com os insucessos e as adversidades, mas não é verdade.

Não gosto de perder ninguém. Não gosto de perder quem tem 28 anos e uma vida pela frente. Não gosto de perder quem ama a vida, e não gosto quando o destino me prega partidas. Deste dia eliminei tudo, guardo apenas uma recordação boa, o telefonema na hora certa de alguém muito atarefado, submerso em papéis importantes que percebeu nas entrelinhas de duas sms trocadas que eu não estava bem e perdeu meia hora da sua vida para me ligar, ouvir os meus soluços, e confortar com palavras de ânimo.

Em pleno caos a amizade pode ter o efeito borboleta, causar um tufão e fazer renascer vida do outro lado do mundo...

domingo, 1 de julho de 2012

A relatividade das coisas...



                                                                         
A Joana tem 19 anos, é meia destravada, alheada de tudo, importa-se pouco com os estudos, vive para as amigas, as saídas, os gajos que vão aparecendo e que ela curte nas paixões que surgem. Mas é acima de tudo uma miúda gira, de riso fácil e parece-me muito feliz.

Hoje teve um azar...

Caiu numa escada e entrou na emergência trazida pelo Inem, num plano duro, colar cervical e com o membro superior direito imobilizado numa tala improvisada no local. Está consciente, orientada, muito queixosa, mas acima de tudo muito ansiosa. Vou falando com ela, sou boa conversadora e adoro conhecer  um pouco quem cuido e ir brincando com questões óbvias, perguntando-lhe coisas pessoais e tentando de uma assentada distraí-la dos procedimentos e reduzindo-lhe a ansiedade. Após o protocolo de radiogramas em politraumatizados e bipada a ortopedia, chegou-se a uma conclusão.

Uma merda e terrível conclusão... que nos deixa a todos sem palavras, revoltados, e mais uma vez a pensar que a vida é madrasta e fodida... 
As dores fortíssimas que tem no braço não são consequência de nenhuma fractura provocada pelo trauma directo da queda, mas sim de um trauma numa zona fragilizada por um osteosarcoma, um temível tumor ósseo que é muito frequente em adultos jovens em idade de crescimento.

Fico sem ar, olho para a Joana que deitada numa maca me falava ainda há pouco dos dois rapazes giros da turma, da sua paixão pelo surf, e da raiva que tem à matemática e à física, ou o medo dos exames nacionais. E como me fez rir em sonoras gargalhadas quando imitou a professora de matemática a resolver exercícios no quadro e a debitar formulas, falando sem parar e sem sequer parar para respirar... 

Uma mãe levanta-se de manhã preocupada porque vai perder o autocarro, ou que tem que descongelar bifes para o jantar e depois acaba nas urgências hospitalares com a vida de pernas para o ar, e a cabeça ao contrário. Na vida tudo é relativo, o que de manhã nos parecia um problema complexo e de terrível solução, de tarde adquire a importância do absolutamente ridículo...

Na vida nem tudo tem verdadeira importância, vamos aprender a relativizar as coisas. Vamos simplificar, ignorar o que é relativo...

segunda-feira, 28 de maio de 2012

De manhã bem cedo é que se começa o dia...


                                                                          

Tenho uma colega doida, uma alucinada que é uma variante especifica de doida, uma palhaça que nasceu para fazer rir, uma menina sisuda e muito responsável com ares de mãe, uma teórica, que vive de teorias e dá-se muito mal com a prática, um chimpanzé musculado que passa a vida a comer bananas, um deprimido que parou no tempo e vive triste e amargurado e uma alma mais ou menos normal e equilibrada cujo único defeito é repetir piadas parvas e não ter jeito para contar anedotas, e uma chefe que tem espírito de galinha mãe e protege os seus pintainhos.

A doida é uma miúda especial, bom coração, excelente pessoa. Reúne apenas uma série de características muito "sui generis" que fazem dela rara. Fala um pouco de todas as línguas, tem o corpo coberto de tatuagens extensas, adere a modas estranhas, tipo uma unha de cada cor, ou cabelo cor de tijolo, na casa dela só existe mobília de cartão, é vegetariana a 100%, percorreu  uma boa parte do mundo de mochila às costas, estudou em Inglaterra, já viveu em nova Iorque, adora musica daquela em que o vocalista não canta mas finge que vomita e apaixonou-se por um baterista de uma conhecida banda, com quem tem um relacionamento há já algum tempo.

Se tudo isto já vos soa um pouco estranho experimentem começar o dia com este dialogo...
Doida a despir-se na sala dos cacifos, para entrar ao serviço.

Pedro: Gaja tens o pescoço todo roxo.
Doida: Não te preocupes isto não é nada... e levanta o braço e passa com a mão no pescoço.
Pedro: Porra gaja, também tens o braço todo negro. O que é isso aí no punho, é um hematoma?
Doida: Caraças mas tu reparas em tudo,  e se deixasses de olhar para o meu corpo enquanto eu me dispo e olhasses para outro lado se faz favor...
Pedro: Um bocado envergonhado... ok, ok, só achei estranho.

Doida continua a despir-se e de repente tira a t-shirt pela cabeça e mostra o tronco em soutien...

Pedro de imediato...fosga-se tens o peito todo negro...é pá desculpa lá...tens que dizer o que se passa..deixas-me preocupado.É aquele merdas do baterista, ele bate-te?

Doida: Oh pah não... o roxo no pescoço foi uma mordidela seguida de um chupão, o negro nos punhos foi das algemas, e o hematoma no peito fui eu que com o entusiasmo levantei as pernas, bati com os pés num quadro por cima do sofá e pumba o gajo caiu-me em cima..

Desatámos todos a rir...

O amor pode ser mesmo....um lugar estranho!

quarta-feira, 23 de maio de 2012

E hoje o discurso possível é este...



                                                                              
Não estou bem, sinto-me inquieta, triste, ligeiramente alheada do que me rodeia, magoada com algumas coisas com que a vida me tem presenteado e quando toca a campainha da emergência e corro à Trauma Room, não estou preparada para o cenário que vou encontrar ...
Chama-se Rafael tem 20 anos e foi atropelado pelo tractor que conduzia, fenómeno muito frequente e que eu desconhecia. enquanto ajudava os pais na lavoura, numa pequena exploração agrícola de cariz familiar. 

Doente entrado, politraumatizado grave com esfacelo profundo da perna esquerda, e parte da zona pélvica e abdominal.Suspeita de fracturas várias na bacia, ramo isquiopúbico, crista ilíaca à esquerda e perda de massa escrotal. Apresenta-se à entrada instável mas reactivo, e responde a ordens simples, orientado no espaço e no tempo, verbaliza factos e recorda o acidente.

Começo uma conversa, enquanto toda a equipa inicia os procedimentos gelafundina em perfusão, dextrose em soro, tipagem, e contacto com o serviço de sangue para 4 unidades imediatas de plasma ...que fazias Rafael? Já não responde, em segundos leio no monitor que as saturações caíram a pique, a frequência cardíaca diminuiu, e as tensões aproximam-se de valores demasiado perigosos..Bipem a anestesia rápido, aproximem carro da reanimação ele vai entrar em paragem.

A Lsd, salta para o degrau da reanimação e inicia reanimação cardio respiratória, decorrem 5 minutos, substituo a Lsd revesamo-nos enquanto a anestesista procede à entubação oro-traqueal do doente, o Pedrinho carrega o desfribilhador, o Duarte prepara epinefrina, adrenalina para estimulação cardíaca.
Insistimos, já passaram 15 minutos, continuamos a insistir, o cirurgião olha para a anestesista, a anestesista olha para o cirurgião, o Duarte substitui-me no degrau da reanimação...ninguém pára, não se desiste, aqui não somos malta de desistir, passam mais dez minutos, a Judy avança e substitui o Duarte, que desce com a camisa fora das calças, e uma mancha de suor nas costas.

A Judy  está num esforço tremendo, a Picolé empurra-a e diz-lhe salta daí, agora sou eu...mulher pequenina, metro e meio de gente, cheia de genica, salta em cima do torax do doente e afunda-se com uma força, e uma raiva incríveis, desfribilhador novamente...insiste, não desiste, numa sequência interminável que se arrasta em minutos que parecem não ter fim.

Mas tem fim...
Fim para nós e fim para o Rafael que tem carinha de anjo, nome de anjo, e repousa com os anjos. 
Hoje não foi dia,  foi  o raio de uma noite de merda.

Quero uma cama quentinha, quero um beijo de quem eu sei, e quero fechar os olhos e esquecer-me.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Frágil equilíbrio...



                                                                           

Paciente do sexo feminino, 18 anos, consciente, orientada, politraumatizada por acidente de viação, entrada na sala de emergência acompanhada do inem, imobilizada em plano duro, com suspeita de lesões graves na transição dorso lombar por queda de moto 4 com eventual secção de medula. Apresenta fortes queixas a nível lombar, e parestesias acompanhadas de dormência e total perda de sensibilidade nos membros inferiores.

Chama-se Ana e mais qualquer coisa, é linda, tem uns olhos esverdeados da cor da camisola verde água que traz vestida, não sei o que sobressai mais se a camisola ou o seu olhar límpido, perco-me num e noutro tentando definir as cores... Corto a roupa peça a peça, tenho pena da camisola, por baixo vejo um soutien cor de rosa com bonequinhos da Hello Kitty, tão querido, tão infantil, tal como a Ana que faz hoje 18 anos.

A Ana pediu ao irmão que a deixasse conduzir a moto 4, mas ele como rapaz responsável disse-lhe que não, só quando ela tivesse carta de condução, já faltava pouco, e a partir de agora já ia começar as aulas. A Ana insistiu, refilou, barafustou, pressionou, e como bom exemplar feminino que é revirou os olhinhos verdes água, e pediu ao irmão baixinho num ronronar meigo de gatinha kitty para a deixar conduzir só uma vez...

O irmão disse-lhe que não a deixava conduzir, mas pronto que a deixava tirar a moto da garagem, e a Ana com o maior sorriso do mundo, sentou-se em cima da moto, ligou-a, e saiu devagar de marcha atrás, não contou com o ressalto do lancil do passeio, a moto deu um solavanco, a Ana sem pratica desequilibrou-se, e o peso da moto aterrou em cima do corpo dela. O resto Vocês sabem.

Sinto-me triste ao olhar para o corpo de menina deitado à minha frente, tenho dificuldade em lhe explicar todos os procedimentos, canalização de veia, algaliação, terapêutica para lesão medular, e perco-me em recordações. Recordo o dia em que fiz 18 anos e fui acampar para Albufeira com amigos, uma trupe de vagabundos livres dos pais, e como me sentia adulta, maior de idade, com a vida toda para viver, com um mundo por descobrir à minha frente, aventureira, destemida, quase invencível. Aos 18 anos nada nos derruba, não há imprevistos, nem imponderáveis.

Lá fora sentado num cadeirão gasto remendado com adesivo, o irmão chora compulsivamente.De pé amparados por uma ombreira da porta, já que mais nada na vida os ampara... os pais sofrem em silêncio uma dor imensa, só visível no desespero dos seus rostos, na forma como se abraçam um ao outro e entreolham em suplicas, esperando o impossível.

No frágil equilíbrio que é a vida, na ténue linha que separa o que somos hoje e o que seremos daqui a uns breves minutos existem grãos de areia na engrenagem, desvios de rota, ressaltos nos passeios que num segundo alteram tudo, até a forma como passamos a ver o mundo. A partir de agora a Ana vai comemorar todos os aniversários numa cadeira de rodas.

domingo, 15 de abril de 2012

Há coisas que só visto... (ou dispo)



                                                                         

Paciente do sexo masculino, 28 anos, entrado na sala de emergência, vitima de acidente de viação por choque frontal contra um painel outdoor na via pública durante uma perseguição policial, recebido à entrada com sinais vitais estáveis, consciente, orientado, score 15, minimamente colaborante, mas apresentando sinais de dor intensa, e talas imobilizadoras nos dois membros inferiores. Possíveis fracturas cominutivas da tibia e peróneo em ambas as pernas por lesão traumática.

Assim que recebo um doente e se ele se encontra consciente a primeira coisa que faço é perguntar-lhe como se chama, dizer o meu e começar a trata-lo pelo seu nome calmamente, tranquilizando-o dentro do possível e falando em voz baixa e com alguma ternura. Tenho por norma que quem está ferido, encontra-se em ambiente hostil, quase sempre assustado, e sem saber muito bem o que o espera, onde se encontra, e com quem lida...

Chama-se Bruno, tem cara de miúdo, franzino, meio assustado, muito queixoso e explica-me como sofreu o acidente, viajava no lugar do pendura, o colega apenas sofreu escoriações ligeiras nas mãos, é um acidente de trabalho, exige o cumprimento de normas especificas, teste de alcolemia, despistagem de substãncias toxicas e mais eteceteras. 

Explico-lhe os procedimentos e pego na tesoura para lhe começar a cortar a roupa, olha para mim e pede-me por tudo para não lhe cortar a farda, sobretudo o blusão, por favor tente tirar-me a roupa, não ma corte, eu tenho que pagar a farda, é me descontada no salário, insisto, mas tem que ser não há outra hipotese, e alem disso isto é um acidente de trabalho, o seguro deve cobrir este desaire. Não, não cobre...por favor peço-lhe não me corte a roupa, olhe para mim...olhei-o, olhos nos olhos... Sabe, são duzentos euros e esse dinheiro faz-me falta.

Parei para pensar durante alguns segundos e compreendi...há razões que a própria razão desconhece..não sabia que as forças de segurança tinham que pagar as próprias fardas mesmo num acidente de trabalho... o meu fardamento é me dado pela entidade empregadora, e quando tem nódoas que não saiem ou apresenta sinais evidentes de desgaste basta-me ir à secção de rouparia e requisitar um novo.

Fiz um esforço enorme para em conjunto com os meus colegas lhe despir a farda, blusão, camisa, camisola de lycra, com imenso cuidado para lhe proteger a coluna cervical que ainda não estava estudada e podia apresentar lesões graves. Avaliei eventuais traumas da coluna, e fiz aquilo que não podia, me é interdito, e o código de conduta em politraumatizados não permite, mas as regras existem para ser quebradas em prol de uma boa causa, a favor de  muitos Brunos  que nesta vida me protegem, defendem, arriscam a vida por mim, têm familia para sustentar, são extremamente mal pagos, constantemente agredidos e que infelizmente até o fardamento lhes é cobrado.

Porra, life is a bitch....


quinta-feira, 5 de abril de 2012

A perfeição existe e resume-se a uma cama e roupa lavada...


                                                                       
São 4h e 30 da manhã, cansada, meio adormecida, sonolenta, embalada pelo maravilhoso mundo das tele vendas, pelo assoprar do Pedrinho, e pelos ais profundos da Picolé que leva a vida a suspirar, deixo-me ir, devagar, sem pressas, cabeceando e deixando que as pálpebras se fechem num cansaço acumulado que não tem fim, que já não domino e que deixo que me domine.

De repente o som habitual, irritante, já nosso conhecido, que nos faz saltar da letargia, e acelerar o batimento cardíaco..o inconfundível besouro da sala de emergência. Dou um salto, procuro com os pézinhos em meias, em bicos dos pés, as socas arrumadas a um canto, e corro o mais que posso...Eu e todos, ninguém fica estático, ninguém se esquece do seu lugar e da sua função e corremos apressados para salvar uma vida.

Paciente do sexo masculino, 37 anos, nacionalidade estrangeira, emigrante de leste, ferimento profundo no torax por arma branca. Entrado em paragem cardio respiratória, ventilação assistida, entubação oro traqueal, e manipulação de ambu. O cenário é confuso, muita gente, muito sangue...os movimentos respiratórios forçados provocam sangramento em jacto, a equipa de anestesia  e a equipa de cirurgia intervém, uma ocupa-se dos sinais vitais do doente que não existem...a outra tenta estancar a hemorragia, pinçar a artéria e colocar uma drenagem toraccica para expandir o pulmão e permitir a respiração assistida.

Não conseguimos. Após 7 unidades de sangue em curso, um esforço sobre humano para salvar uma vida, e 45 minutos de doente em paragem...o chefe de equipa grita: Fim!! Não se faz mais nada, não há mais hipótese..declaro o óbito. Cansada, suada, o corpo peganhento, as mãos com as articulações doridas, as pernas a fraquejarem, paro 5 segundos e sento-me a um canto da sala num banco alto. 

A nossa volta o caos, o lixo atirado pelo chão, luvas, papeis, embalagens rasgadas, plásticos, sangue, pensos compressivos, ligaduras, gaze, olho para baixo e vejo nas socas pingos de sangue, presa à sola  um enorme coagulo castanho de sangue oxidado, nas meias de riscas sobressaem bolas vermelhas, olho as calças da farda e mais sangue que escorre pela perna direita, sinto-me desconfortável, preciso urgentemente de um banho, de lavar o cheiro a hospital, de tirar de mim o cheiro ferroso do sangue, sinto-me tão suja.

Preciso sair dali, hoje não me apetecia este espectáculo.Hoje queria um mundo diferente, uma realidade melhor, clean, perfumada, sorridente, sem óbitos de preferência, sem lixo e sem sangue. Dizem que Deus existe, nunca o vi, tenho dias que acredito nele, tenho outros como hoje que lamento dizê-lo mas tenho sérias dúvidas... Além disso hoje pareceu-me que se existe só pode ser sádico.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O "Superhome" da Arrentela...


                                                                           
Sentada na sala de pausa, com um iogurte liquido numa mão e uma sanduíche de queijo na outra, olho especada para o televisor, que sem som, debita umas imagens de uma máquina, que estremece uma boazona, parecendo que lhe vai fazer saltar o cérebro, fritar os coxames e supostamente fazer da já podre de boa uma top model. A LSD, agarrada ao telemóvel e de phones nos ouvidos canta Paulo Gonzo desafinado e aos gritos para uma plateia de risos, a Tattoo mostra as unhas das mãos, quatro da mesma cor, e uma de cor diferente em cada mão, explicando ao publico feminino as tendências de vernizes da moda, tons pastel, amarelos claros e verdes básicos água, concluo que estou out, só uso mesmo vermelho, bordeaux, ou azul.

A Maggy folheia uma parolice de uma revista de vips, que fala da Floriberta que espera uma Lyoncee em versão masculina, de futuro nome talvez Dragonzoe, o Duarte apático como sempre desde que a namorada o traiu, olha para nós, está presente mas só de corpo, a alma anda muito longe dali, e vive desde há meses num mundo que ninguém conhece e que é só dele, o Pedrinho faz, o que faz melhor...dorme, de boca aberta, quase a babar-se e a ressonar baixinho...parece um gato a ronronar.O Zeca mastiga pastilha elástica como se não houvesse amanhã e no intervalo de cada mastigadela, acho que lhe consigo ver a cor dos boxers.

De repente toca a campainha da reanimação, um besouro estridente e irritante. Largo a metade do pão, todos damos um salto e corremos para a sala de emergência a passo de corrida. Numa maca trazida pelos bombeiros de uma localidade pertinho de Lisboa chega um paciente do sexo masculino de 64 anos de idade, score 12, desorientado, confuso, afásico, imperceptível na fala, com ferida incisa visível no parietal esquerdo, e provável traumatismo craniano, por queda.

Nada de novo, um caso absolutamente banal de entre muitos que nos chegam todos os dias, a grande novidade é que os bombeiros avisam-nos que o doente foi encontrado nu no local, e traz vestida amarrada ao pescoço, uma capa vermelha com um S de super homem bordado...tento controlar o riso o melhor que posso, mas trocamos olhares cúmplices e sorrisos entre nós... A imagem de um barrigudo em personagem de super herói não é bonita de se ver, e  deixa-nos meio aparvalhados.

A cena é mesmo hilariante. O senhor despia-se, vestia a maravilhosa e sensual capa de Super Homem tomava o comprimido colorido que lhe estimulava a performance e mais qualquer coisa e preparava-se para o salto mortal com frick flack à retaguarda quando tropeçou no tapete e caiu, batendo com a cabeça e ficando inconsciente...

Azarucho do superhome.....nem fez o salto, nem deu uma. Cum catano!

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Vendem abraços? Compro dois...


                                                                           

Tive um dia de merda. Trabalhei todo o dia sob um stress danado, e acabei o turno numa ambulância medicalizada aos solavancos pelas ruas esburacadas de Lisboa, em desequilíbrio constante, agoniada pelas curvas e pela trepidação, capaz de vomitar em cima do doente e do médico que me acompanhavam, ou melhor que eu acompanhava.

Para rir só mesmo os nossos diálogos, el doctor, era de nacionalidade cubana falava-me em espanhol, eu falava-lhe em português, e ele respondia-me num sorriso simpático: Non te entiendo, ao que eu repetia o que tinha dito num espanhol macarrónico, mas entendível. Perceptível só mesmo a minha cor cada vez mais amarela, num lindo tom próximo do castanho diarreia, e os vómitos que já não conseguia controlar.

Seguimos todo o caminho aos arremessos na ambulância, (aterrei ao colo dele uma vez) e aos arremessos na língua...ele falava-me em "caderas" "espalda" e eu não via cadeiras, falava-me em rodillas, e eu olhava para as rodas da maca de transporte, "borra tudo"...caraças, porque é que não aprendi espanhol, hoje dava-me jeito, caderas é bacia, rodillas é joelhos...pois...borrar é apagar, desfazer.... não percebia patavina..népia.

Cada vez me sentia pior, queria mudar as seringas no injector e já não via nada, sentia a velocidade debaixo dos pés, os objectos a deslocarem-se à minha volta, e o raio do destino que nunca mais chegava, el doctor hablava, hablava....mas eu desliguei...non te entiendo.
Vou apagar...

Acabei por chegar ao distrital da área de residência do doente, sentada no chão da ambulância, branca como a cal, com a cabeça enfiada dentro de um saco plástico, com um soro com metoclopramida enfiado no braço, e com uma vontade de regressar a Lisboa, num jacto particular, e de preferência sentada numa poltrona vip.

Hoje apetecia-me um chá quente, um abraço imenso de mãe...ou só um abraço.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Dormir sem pressas...


                                                                           
A Maria dormita no cadeirão, meia adormecida, de cabeça apoiada na mão.Tem os olhos fechados mas consegue-se perceber que estão inchados, cheios de papos, por baixo vejo as olheiras fundas, arroxeadas, quase negras. Tem os lábios meios entreabertos, e neles o desenho de um sorriso triste. Apercebo-me que mesmo a dormir, sofre. E eu sofro com ela.

Apresento-vos a rapariga mais teimosa que já conheci. Tem 34 anos, e há vários dias que dorme sentada num quadrado de napa remendado com adesivo hospitalar, duro, meio esquisito, que uns chamam de sofá, outros de cadeirão, ou mesmo de poltrona, mas que a mim me parece só uma cadeira um pouco mais larga, igualmente desconfortável, e com um nome pomposo. Espera por nada, espera por tudo, espera por um milagre, mas não desiste. Numa teimosia doce de quem ama.

O marido da Maria é professor, colocado a 150 quilómetros, sortudo dizem a maioria das pessoas, teve trabalho o que é uma sorte, e mesmo assim não ficou muito longe de casa.Vai e vem para Lisboa todos os dias, numa rotina pesada, dolorosa, de quem sai de casa em madrugadas escuras e regressa ao fim do dia cansado, mas a tempo de cuidar dos filhos, de ajudar nas tarefas domesticas, corrigir testes, e ainda amar a mulher à pressa.

Era sexta-feira, já se sentia o fim de semana, queria chegar mais cedo, saiu ao inicio da tarde rumo a Lisboa, o sol quentinho, a temperatura agradável, a continua extensão de alcatrão em auto estrada junto com o cansaço extremo criaram o sono, e os olhos fecharam-se por um minuto, só um minuto mesmo e o marido da Maria adormeceu. Despistou-se, sofreu um traumatismo craniano grave, e está em coma.

Agora dorme descansado, profundamente, sem pressas, num sono do qual já não acredito que acorde.... 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Gatos pretos e dias de azar...


                                                                           
Mais um mito que cai por terra....

Paciente do sexo masculino, 21 anos de idade, vitima de atropelamento, paragem cardio-respiratória, score 4, entubado no local do acidente por equipa médica do inem, em ventilação mecânica. Politraumatizado, suspeita de traumatismo fechado grave no abdómen, com possível ruptura de víscera oca e amputação traumática visível do 1/3 distal do membro inferior esquerdo. Uma unidade de sangue A+ em curso, gelafundina em perfusão rápida. Depois de tudo o que foi feito no local do acidente o doente entrou na emergência, ventilado e com valores tensionais muito baixos quatro/sete.

Era necessário repor os níveis tensionais, estabilizar o hematócrito, parar as hemorragias ou pelo menos diminui-las para levar o doente até ao bloco operatório...mas não foi possível. Cada vez a tensão arterial era mais baixa, as hemorragias continuas. Corremos e corremos, arriscámos, pedimos mais sangue, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito unidades de sangue...sim, quase continuas, em fluxo rápido e nada, zero. Doente em choque hipovolêmico. Tudo correu mal...nada resultou.

Tinha comigo interiorizada a teoria que um eléctrico é uma coisa lenta, chateia de morte de tão devagar que anda, que magoa mas não mata. Morre-se numa moto a 150 km à hora, morre-se num despiste de automóvel, quando se cai à linha de comboio na esperança de não se perder este que o próximo pode demorar. Agora correr para o eléctrico, cair e ser atropelado por ele em andamento, a 10 km à hora é ridículo, não faz sentido, e cabe naquela margem de azar, das coisas que de tão impossíveis de acontecer só acontecem mesmo aos outros.

Quando era mais novita e ainda estudava, corri vezes sem conta para apanhar o eléctrico, uma vez a descer em andamento, estatelei-me e esfolei os joelhos...pelos vistos tive sorte.
Hoje caiu por terra mais uma teoria minha, frágil, idiota e assente em pressupostos errados...os eléctricos afinal também matam..

domingo, 8 de janeiro de 2012

Crise, decisões e merdas de confusões...



                                                                     

Um facto incontornável é que cada vez existe mais gente triste, deprimida e depressiva.Os tempos estão difíceis, a vida só nos atira tijolos, e a maior parte das vezes, nas 24 horas do dia só muito pouco do que vivemos é que é gratificante, estimulante e dá satisfação.Depois temos o problema de sermos naturalmente insatisfeitos, queremos sempre mais, ambicionamos o que não podemos ter, e vivemos em esforço continuo das nossas capacidades para conseguirmos alcançar o que nos propusemos..quase sempre muito mais do que seria expectável e aceitável. Quando o esforço é muito grande, muito intenso, e não existem mecanismos de escape, podemos flippar, queimar os circuitos e ficar tan-tans de vez...ou seja doentes em tratamento psiquiátrico.

Desde há uma semana que a minha urgência recebe doentes psiquiátricos, nós que por ali andamos não recebemos formação especial para lidar com estes doentes, que são doentes com características especiais, quase sempre muito mal educados, porcos, agressivos e violentos. A urgência em si também não tem condições, nem espaço físico próprio adaptado para estes doentes que assim do nada, caíram-nos de pára quedas Basta dizer que logo no primeiro dia um colega meu foi agredido, e o vidro do balcão da admissão estilhaçado em mil bocados por um murro.Nada que qualquer um de nós não previsse.

Vieram então uns senhores sábios instalar uns botões nas nossas salas que se chamam carinhosamente botões de pânico, e que quando pressionados accionam um alarme no nosso posto de policia, resultado o dito botão fixe, já foi accionado por diversas vezes e é giro ver chegar ao nosso serviço uns senhores de azul, giraços, com ar de maus, na posse de uns spray's catitas que fazem chorar, e umas armas engraçadas que por acaso até metem medo. Mas na verdade um doente psiquiátrico está fora de si, não sabe o que faz, ou demonstra não saber fazer... fico na duvida, e quando desata a bater e a dar pontapés em tudo o que vê ou mexe, e a chamar nomes muito bonitos a toda a gente, não há nada, nem ninguém que o faça parar...e consta-me que não sente medo, vira daltónico, e nem sabe distinguir os senhores de azul dos senhores de branco..

Ontem uma alucinada, alcoólica, em programa de desintoxicação, com ar de peixeira, porca como um raio, cuspiu-me para cima, e eu gostei muito. Fiquei muito feliz e realizada, porque é sempre bom quando somos reconhecidos profissionalmente pelo nosso mérito e esforço, fiquei estupefacta com tanta consideração e admiração, e sem tempo para me recompor, porque logo de seguida....vieram os nomes fixes, só elogios, e palavras giras. Só não me chamou santa, nem virgem..... porque isso é que era uma verdadeira tristeza.

Maluquinha ? Sou eu.....presente!