São 4h e 30 da manhã, cansada, meio adormecida, sonolenta, embalada pelo maravilhoso mundo das tele vendas, pelo assoprar do Pedrinho, e pelos ais profundos da Picolé que leva a vida a suspirar, deixo-me ir, devagar, sem pressas, cabeceando e deixando que as pálpebras se fechem num cansaço acumulado que não tem fim, que já não domino e que deixo que me domine.
De repente o som habitual, irritante, já nosso conhecido, que nos faz saltar da letargia, e acelerar o batimento cardíaco..o inconfundível besouro da sala de emergência. Dou um salto, procuro com os pézinhos em meias, em bicos dos pés, as socas arrumadas a um canto, e corro o mais que posso...Eu e todos, ninguém fica estático, ninguém se esquece do seu lugar e da sua função e corremos apressados para salvar uma vida.
Paciente do sexo masculino, 37 anos, nacionalidade estrangeira, emigrante de leste, ferimento profundo no torax por arma branca. Entrado em paragem cardio respiratória, ventilação assistida, entubação oro traqueal, e manipulação de ambu. O cenário é confuso, muita gente, muito sangue...os movimentos respiratórios forçados provocam sangramento em jacto, a equipa de anestesia e a equipa de cirurgia intervém, uma ocupa-se dos sinais vitais do doente que não existem...a outra tenta estancar a hemorragia, pinçar a artéria e colocar uma drenagem toraccica para expandir o pulmão e permitir a respiração assistida.
Não conseguimos. Após 7 unidades de sangue em curso, um esforço sobre humano para salvar uma vida, e 45 minutos de doente em paragem...o chefe de equipa grita: Fim!! Não se faz mais nada, não há mais hipótese..declaro o óbito. Cansada, suada, o corpo peganhento, as mãos com as articulações doridas, as pernas a fraquejarem, paro 5 segundos e sento-me a um canto da sala num banco alto.
A nossa volta o caos, o lixo atirado pelo chão, luvas, papeis, embalagens rasgadas, plásticos, sangue, pensos compressivos, ligaduras, gaze, olho para baixo e vejo nas socas pingos de sangue, presa à sola um enorme coagulo castanho de sangue oxidado, nas meias de riscas sobressaem bolas vermelhas, olho as calças da farda e mais sangue que escorre pela perna direita, sinto-me desconfortável, preciso urgentemente de um banho, de lavar o cheiro a hospital, de tirar de mim o cheiro ferroso do sangue, sinto-me tão suja.
Preciso sair dali, hoje não me apetecia este espectáculo.Hoje queria um mundo diferente, uma realidade melhor, clean, perfumada, sorridente, sem óbitos de preferência, sem lixo e sem sangue. Dizem que Deus existe, nunca o vi, tenho dias que acredito nele, tenho outros como hoje que lamento dizê-lo mas tenho sérias dúvidas... Além disso hoje pareceu-me que se existe só pode ser sádico.
Minha querida,
ResponderEliminarNão imagino o que será passar por isso...sei que deves lutar com garras e dentes com o resto dos guerreiros que te rodeiam.
Adoro a mulher que és.
Beijo
Utena: Guerreira sou, não sou de desistir, de baixar os braços, mas há lutas que são monstruosamente desiguais, e que ainda não levantaste a espada e já sabes que vais ser fulminada...
Eliminarbeijo* ruivinha da blogosfera
Que dia dificl amiga, e falando do post anterior, ao ler este digo te já que tu és a minha super-heroina. Meu Deus suportar isso quase todos os dias não é para todos. És forte e muito muito querida
ResponderEliminarBeijo doce cheio de força
Mister charmoso: Forte não sou... nada mesmo.Tenho dias que sozinha tenho dificuldade em aguentar tanta coisa, em que preciso de um olhar, de um abraço, de um sorriso, ou apenas de alguém que me oiça, mas não sou exigente e contento-me com pouco.
Eliminarbeijo* charme boy
Aceito o desafio do teu blog, e assim que puder respondo.
...a maior parte das almas deste mundo não imaginam que é esgotante o trabalho na área da saúde...não é só a dor física que se trata...muitas vezes, o que mais toca é a dor interna de quem está lá a precisar de um olhar meigo...de um olá simples...sim, é verdade, muitas vezes os profissionais têm de ser frios...a pressão psicológica a que são exercidos é tanta que, se não colocarem algumas barreiras, a vontade é fugir, chorar, dar murros em pontas de facas...porque apesar de tudo são seres humanos que também sentem a dor de quem ali está...e que muitas vezes não têm hipóteses de ajudar...e quando são crianças ou vidas desfeitas de utentes com doenças graves...
ResponderEliminarbem hajas enfermeirinha querida
um beijo
nunca desistas...haverá sempre alguém a precisar da tua mão, do teu olhar e da tua ajuda.
-____-
Gadreel:Tenho dias, em que regresso a casa tão esgotada, tão emocionalmente carente que tudo o que quero mesmo é um banho e o conforto da minha cama, quentinha, acolhedora, que se molda ao meu corpo, perfeita para mim.
Eliminarbeijo* Rapaz que tão bem que me entende
dá para imaginar...a forma como descrever é tao clara e transparente. so me consegui lembrar (felizmente pouca vezes)que quando vamos ao hopital nunca se pensa em quem la trabalha mas sim em nós e em quem la temos a sofrer e esquecemos que quem la está tambem sofre, tambem leva para casa a dor alheia, que luta, que se cansa, que sofre...mas outra parte de mim fica bem, por saber que pessoas como tu existem e que querem saber...que se cansam por "nós" quem querem saber da "nossa" dor e dos "nossos" que podem la estar... se nunca ninguem te agradeceu, aqui fica o meu agradecimento pela tua vocação e por queres saber :-)
ResponderEliminarXana: Considero-me uma privilegiada, faço o que gosto e tenho trabalho, nos tempos que correm é mesmo um luxo.
EliminarMas é um trabalho fisicamente cansativo e emocionalmente esgotante, pelo menos na minha área que é a da emergência hospitalar, podemos estar sossegados em nada para fazer e de um momento para o outro quase que cai o mundo...
beijo*
Estas situações são um misto de sentimentos tão confuso... por um lado, o "não querer que isto aconteça", por outro o "estou a ajudar alguém que precisa mesmo de mim" e ainda o "não fui capaz de fazer nada".
ResponderEliminarHá dias de caca mesmo. Percebo tão bem quando dizes que te sentes suja no fim de tudo isso. Não é só a sujidade do sangue espalhado pela farda... o resto é que é mais difícil de lavar. *
N: Sentimos sobretudo a impotência de não conseguir fazer nada, de não alterar o destino traçado, e sentimos como somos pequenos, insignificantes neste mundo. Eu no fim de um turno em que perco uma vida saio sempre com a sensação de que a vida é demasiado curta, que ninguém merece morrer aos 37 anos, e que temos mesmo é que aproveitar as coisas boas, investir naquilo que gostamos e o resto que se lixe...amanhã pode passar um camião e atropelar-nos.
ResponderEliminarbeijo* Nurse boy
Sigo o teu blog há algum tempo, adoro tudo o que escreves, da maneira que o fazes... mas não deixa de ser mórbido... o que gosto mesmo de ler são estes posts da TUA VIDA a salvar outras. Não gosto quando alguém grita "FIM!", mas gosto do esforço pela vida que até nas palavras transmites.
ResponderEliminarLia: Este blog é um relato na primeira pessoa da minha vida, do meu trabalho, dos meus amores, das minhas paixões, dos encontros e desencontros que vão surgindo, do que de melhor me acontece, mas do que de pior também vou tendo...porque viver é isto, ligar o descomplicómetro e aproveitar cada segundo como se fosse o ultimo.
Eliminarbeijo* cheio de vida
"se existe só pode ser sádico" !!!!
ResponderEliminarNem comento esta afirmação!!!
Um abracito pikena adversária!!
Beijinho e Boa Páscoa*
Confuskos: Lamento se te choquei, ou se de alguma forma aquilo que penso te incomoda, não foi essa a minha intenção e respeito sempre quem tem uma opinião diferente da minha, mas aquilo que vejo todos os dias, o sofrimento sobrehumano de pessoas que não mereciam o que lhes acontece, dá-me sempre a ideia que o Deus como o imaginamos está a dormir, ou então diverte-se a ver as pessoas a passarem um mal bocado... sabes morrer devia ser mais fácil, e não era preciso sofrer tanto. A dor incomoda-me, mesmo a dos outros.
Eliminarbeijinho* e boa Páscoa para ti também, com muitas amêndoas, e cuidados redobrados com o aparelho e os dentes.
mau bocado* correcção de erro
EliminarAC, gostei muito deste post (entre outros). Consegues imprimir nas palavras a realidade, os sentimentos, as vivências. Acho a tua profissão fascinante e se tivesse tido neurónios teria ido para medicina. O "sádico" não me deu poder para tanto. Há uma dicotomia de sentimentos no teu trabalho. A realização de salvar alguém e o sentimento de frustração de não o conseguir fazer. O primeiro prevalecerá de certeza. Pois são mais sorrisos que tristezas. No meu trabalho, não é a morte que me tira a serenidade mas sim a perfidia, a maldade, a mesquinhez das pessoas. Acontece que estes estão vivos. Um beijinho
ResponderEliminarbelle du jour: Infelizmente sei que há muitos locais de trabalho onde o ambiente entre colegas é muito mau..num sitio onde todos são precisos, onde o resultado final depende da entreajuda, da camaradagem, da cumplicidade entre todos, e da boa vontade de todos, a amizade é maior.
EliminarViver in extremis acelera emoções e demonstra a vulnerabilidade de cada um de nós..não serve de nada sermos más pessoas, egoístas, estúpidos, mal educados, só nos chateamos, aborrecemos os outros. Amanhã podemos já cá não estar..há que perceber que a vida é demasiado curta.
bejo* belle femme
AC, os colegas não são fáceis por vezes. No entanto estava-me a referir aos clientes. Sou advogada. Bj
Eliminarbelle du jour: Uma profissão dificil também, lidar com a maldade e defender quem é culpado não era para mim, exige uma habilidade, inteligência e destreza mental que só está reservado a alguns:)
EliminarEsses tipos do leste costumam ser bastante violentos quando se brigam entre eles...
ResponderEliminarFireHead: Este foi isso mesmo, coisas de negócios, dinheiro, e etc's estranhos entre eles...que não quero saber.
EliminarDeixo-te aqui um abraço apertado que te conforte e te dê alguma força anímica para continuares. Beijinho, AC.
ResponderEliminarfrancisco: Abraços apertados sabem sempre bem...tãooo bem:)
Eliminarbeijinho, kiko
O ser humano tem a mania de que é Deus. Pensa que pode brincar aos deuses, matando e ressuscitando, quando tal não devia acontecer.
ResponderEliminarHoje perdeste, amanhã, ganhas.
That's life...
Josh Gottam: Nunca pensamos que somos Deus...tentamos salvar sempre até ao ultimo pico cardíaco, até ao ultimo sopro, acredito no proverbio "Até ao lavar dos cestos é vindima", e a esperança é sempre a ultima a morrer...e felizmente sou das que desisto com muita dificuldade!
Eliminarbeijo* Josh boy