segunda-feira, 28 de maio de 2012

De manhã bem cedo é que se começa o dia...


                                                                          

Tenho uma colega doida, uma alucinada que é uma variante especifica de doida, uma palhaça que nasceu para fazer rir, uma menina sisuda e muito responsável com ares de mãe, uma teórica, que vive de teorias e dá-se muito mal com a prática, um chimpanzé musculado que passa a vida a comer bananas, um deprimido que parou no tempo e vive triste e amargurado e uma alma mais ou menos normal e equilibrada cujo único defeito é repetir piadas parvas e não ter jeito para contar anedotas, e uma chefe que tem espírito de galinha mãe e protege os seus pintainhos.

A doida é uma miúda especial, bom coração, excelente pessoa. Reúne apenas uma série de características muito "sui generis" que fazem dela rara. Fala um pouco de todas as línguas, tem o corpo coberto de tatuagens extensas, adere a modas estranhas, tipo uma unha de cada cor, ou cabelo cor de tijolo, na casa dela só existe mobília de cartão, é vegetariana a 100%, percorreu  uma boa parte do mundo de mochila às costas, estudou em Inglaterra, já viveu em nova Iorque, adora musica daquela em que o vocalista não canta mas finge que vomita e apaixonou-se por um baterista de uma conhecida banda, com quem tem um relacionamento há já algum tempo.

Se tudo isto já vos soa um pouco estranho experimentem começar o dia com este dialogo...
Doida a despir-se na sala dos cacifos, para entrar ao serviço.

Pedro: Gaja tens o pescoço todo roxo.
Doida: Não te preocupes isto não é nada... e levanta o braço e passa com a mão no pescoço.
Pedro: Porra gaja, também tens o braço todo negro. O que é isso aí no punho, é um hematoma?
Doida: Caraças mas tu reparas em tudo,  e se deixasses de olhar para o meu corpo enquanto eu me dispo e olhasses para outro lado se faz favor...
Pedro: Um bocado envergonhado... ok, ok, só achei estranho.

Doida continua a despir-se e de repente tira a t-shirt pela cabeça e mostra o tronco em soutien...

Pedro de imediato...fosga-se tens o peito todo negro...é pá desculpa lá...tens que dizer o que se passa..deixas-me preocupado.É aquele merdas do baterista, ele bate-te?

Doida: Oh pah não... o roxo no pescoço foi uma mordidela seguida de um chupão, o negro nos punhos foi das algemas, e o hematoma no peito fui eu que com o entusiasmo levantei as pernas, bati com os pés num quadro por cima do sofá e pumba o gajo caiu-me em cima..

Desatámos todos a rir...

O amor pode ser mesmo....um lugar estranho!

quarta-feira, 23 de maio de 2012

E hoje o discurso possível é este...



                                                                              
Não estou bem, sinto-me inquieta, triste, ligeiramente alheada do que me rodeia, magoada com algumas coisas com que a vida me tem presenteado e quando toca a campainha da emergência e corro à Trauma Room, não estou preparada para o cenário que vou encontrar ...
Chama-se Rafael tem 20 anos e foi atropelado pelo tractor que conduzia, fenómeno muito frequente e que eu desconhecia. enquanto ajudava os pais na lavoura, numa pequena exploração agrícola de cariz familiar. 

Doente entrado, politraumatizado grave com esfacelo profundo da perna esquerda, e parte da zona pélvica e abdominal.Suspeita de fracturas várias na bacia, ramo isquiopúbico, crista ilíaca à esquerda e perda de massa escrotal. Apresenta-se à entrada instável mas reactivo, e responde a ordens simples, orientado no espaço e no tempo, verbaliza factos e recorda o acidente.

Começo uma conversa, enquanto toda a equipa inicia os procedimentos gelafundina em perfusão, dextrose em soro, tipagem, e contacto com o serviço de sangue para 4 unidades imediatas de plasma ...que fazias Rafael? Já não responde, em segundos leio no monitor que as saturações caíram a pique, a frequência cardíaca diminuiu, e as tensões aproximam-se de valores demasiado perigosos..Bipem a anestesia rápido, aproximem carro da reanimação ele vai entrar em paragem.

A Lsd, salta para o degrau da reanimação e inicia reanimação cardio respiratória, decorrem 5 minutos, substituo a Lsd revesamo-nos enquanto a anestesista procede à entubação oro-traqueal do doente, o Pedrinho carrega o desfribilhador, o Duarte prepara epinefrina, adrenalina para estimulação cardíaca.
Insistimos, já passaram 15 minutos, continuamos a insistir, o cirurgião olha para a anestesista, a anestesista olha para o cirurgião, o Duarte substitui-me no degrau da reanimação...ninguém pára, não se desiste, aqui não somos malta de desistir, passam mais dez minutos, a Judy avança e substitui o Duarte, que desce com a camisa fora das calças, e uma mancha de suor nas costas.

A Judy  está num esforço tremendo, a Picolé empurra-a e diz-lhe salta daí, agora sou eu...mulher pequenina, metro e meio de gente, cheia de genica, salta em cima do torax do doente e afunda-se com uma força, e uma raiva incríveis, desfribilhador novamente...insiste, não desiste, numa sequência interminável que se arrasta em minutos que parecem não ter fim.

Mas tem fim...
Fim para nós e fim para o Rafael que tem carinha de anjo, nome de anjo, e repousa com os anjos. 
Hoje não foi dia,  foi  o raio de uma noite de merda.

Quero uma cama quentinha, quero um beijo de quem eu sei, e quero fechar os olhos e esquecer-me.