sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Que vais fazer amanhã AC?




Uns chegam, outros vão.
A nossa vida é feita com aqueles que ficam.



Amanhã vou estar a trilhar por aqui. Na mítica terra dos templários. Vai ser um dia grande, daqueles mesmo gigantes. A partida vai ser às 5 da manhã ainda com um olho meio aberto e o outro quase fechado, sonolenta, embalada de inicio pelos solavancos do autocarro até o sol nascer... mas depois tudo se compõe. Vão haver reencontros, abracinhos, trocas de alcunhas e de mimos, partidas malandras, palmadas nas costas, gritos aos ouvidos de quem fechar os olhos para adormecer. E vai ser chegar e largar o cansaço da semana em cada trilho, tropeçar nas primeiras pedras do caminho, subir a custo as primeiras encostas íngremes, suar as estopinhas, trocar palavras e emprestar mãos e braços para ajudar quem precisa de um empurrão arribas acima, ou aceitar a sorrir as mãos que me chegam. Duvidar meia dúzia de vezes que é possível chegar ao fim. Mas chegar.

Piquenicar num sitio à sombra as meias metades de pão de sementes com presunto e com queijo, passar vezes sem conta as caixas com uvas, melão e pedaços de bolo caseiro aos amigos. Provar coisas que achávamos impossíveis. Rir de tudo. Rir de nada. Andar às cavalitas dos amigos, insinuar pancada, pontapés, lutas e guerrinhas, tudo a rir. Jogar ao "Lá vai alho". Ouvir segredos de cada uma daquelas vidas, falar de mim e mais do que abrir a boca, abrir o coração. Acabar o dia mais cansada do que fui. Suspirando por uma cama e pelo final do dia.

Regressar no mesmo autocarro já noite fechada, semi adormecida, embalada pelos mesmos solavancos, enroscada no casaco polar, aninhada naquele colo que traz pasteis de nata e que diz que manda alguma coisa, cabeça no ombro de quem reparte os dias e as horas comigo. A meias. Nas mesmas escolhas que eu.  E o sono vem. E a vida vai e vem, e vem e vai. E o autocarro vai indo. E a sensação de estar bem fica.

Discussão a feijões...






Doente entrada na sala de emergência imobilizada em plano duro, vitima de despiste seguido de capotamento, desencarcerada no local por uma equipa de resgate dos bombeiros e trazida pelo Inem. À entrada, orientada, consciente, parâmetros vitais estáveis, valores tensionais mantidos e score 15. Apresentava tala imobilizadora no membro inferior direito por possível fractura da diáfise do fémur, colar cervical para estabilização apenas, mas sem sinais de lesão, e escoriações várias na face e crânio com provável fractura dos ossos próprios do nariz e perda de peças dentárias visíveis. 

Tem 34 anos e chama-se Ana Isabel. Gosto de Anas e uma Ana nunca vem só, vou dizendo. E acrescento, há todo o tipo de Anas, Ana Margarida, Ana Cristina, e até Ana Isabel. Brinco com ela, com o nome dela e apresento-me, sou a enfermeira ac e vamos cuidar de ti. Ela deixa escapar um sorriso tímido com a coincidência. Vou canalizando uma veia, tirando sangue para análise e despistagem de substâncias proibidas (que agora em caso de acidente são obrigatórias) controlando valores de oxímetria e tensão arterial no monitor e vamos conversando. Bipa-se a Ortopedia e contacta-se com urgência a Radiologia.

Então Ana como te aconteceu isto... 

Começa a falar e a soluçar compulsivamente. Entre palavras que não entendo, metade ditas, metade sussurradas, muito a custo, consigo finalmente perceber o que se passou. Iam a discutir, ela e o marido, numa discussão banal, sem sentido. Quase daquelas macacoso-piolhoso. Infantil e sem interesse como parece que começam todas as discussões. Por nada. A atravessar a ponte Vasco da Gama no sentido para Lisboa e quase a chegarem ao trabalho. Ela vinha a conduzir, ele disse-lhe - vai mais devagar, vais muito depressa, ela disse-lhe - mas só vou a 90, ele disse - mas se eu te digo para ires mais devagar é para ires mais devagar, ela disse - mas quem vai a conduzir sou eu por isso vou à velocidade que quero, ele disse - não vais não, eu vou aqui e se eu digo para ires mais devagar tu vais mais devagar... e foram nisto vários quilómetros até que ela o desafiou e pondo o pé no acelerador esticou a corda um pouco mais... Ele danado com a provocação não vai de modas, num gesto irreflectido puxou o travão de mão, o carro ia a 120 à hora, entrou em derrapagem, deu uma pirueta, ela perdeu de imediato o controlo da direcção, bateu no separador central e a partir daí iniciou um processo de voltas e cambalhotas em que acabaram os dois dentro do carro, presos com o cinto de segurança, de cabeça para baixo e enfiados no meio de uma nuvem de pó dos airbags, de vidros partidos, plásticos do interior e ferros retorcidos. A ultima coisa que ainda o ouviu dizer foi -  ai é assim, então foda-se quem conduz sou eu.

Disse-lhe Ana, isso é muito grave, que vais fazer em relação ao que se passou?
Respondeu-me nada. Ele já tem a conta dele (fracturou as duas pernas e fez uma luxação de um ombro), e eu não vou fazer mais nada. Vamos-nos sentar a falar os dois. Isto é só nosso, por favor não conte nada. Claro que não Ana, brinco com a situação e justifico dizendo que enfermeiras são como os padres, estão sujeitas ao sigilo da confissão.

Para a companhia de seguros foi mais uma participação de sinistro. 
Para a policia um despiste possivelmente por excesso de velocidade.
Para os números das estatísticas, mais um acidente.
Para a Ana um segredo em forma de pesadelo que vai deixar marcas para sempre. Suponho até que irreparáveis.
Para mim que sei a verdade de tudo o que se passou fica uma raiva imensa por quem é capaz de colocar vidas em risco, a sua e as dos outros para não perder a filha da puta de uma discussão a feijões e sobre nada que valha a pena. O amor às vezes é lindo.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Efectivamente viver...







Na minha vida interessa-me a história, a minha, não as dos contos de fadas que me impingiram em criança. Aquela que todos os dias escrevo, dia a dia, a tinta permanente e pela minha mão, fruto do que escolho, do que a vida me oferece, dos improvisos e imprevistos com que me deparo, das estranhas casualidades de quem se cruza no meu caminho e se atravessa à minha frente. Importante é o desenvolvimento de cada episódio, as pequenas histórias dentro do grande enredo. Tenho dias em que as histórias são boas e os episódios felizes, tenho outros em me sinto retalhada e atirada aos crocodilos e a esbracejar arduamente pela sobrevivência, prestes a desistir, sem ajuda ou salvação.

Tenho um grande guião iluminado pelos sonhos que persigo, que não quero deixar cair, do qual não quero fugir. Na minha história até há um herói em corpo de homem de mãos grandes e pernas peludas e não um príncipe perfeito assexuado. E esse herói tem uma missão, vai fazer-me feliz. Pelo caminho os pedaços de mim vão ficando algures espalhados por aí, para guardar ou para esquecer, é como quiserem fazer. As boas recordações, as pessoas que passaram no meu coração e souberam deixar marca, que me tatuaram o corpo com beijos e carinhos, que souberam no momento certo abraçar-me e enxugar-me as lágrimas, ou abanar-me e obrigar-me a reagir, rostos de enormes sorrisos, daqueles inesquecíveis, de gargalhadas rasgadas, sonoras, que estremecem uma sala - genuínas como as minhas, que alguns adoram e muitos detestam - ou até recordações já esquecidas daqueles em quem acreditei e me desiludiram, que não souberam ver-me, ou que aproveitaram uma pequena distracção minha para me magoarem, tudo isso fica para sempre.

Acredito na simplicidade do óbvio, valorizo a sinceridade e as palavras simples, cativa-me quem me faz rir e consegue tirar de mim o melhor que tenho guardado. Oculto, só meu. Sou uma mulher de palavras, um gosto-te sincero toca-me mais que um amo-te normalizado, um olhar profundo diz-me mais que um discurso ensaiado, uma surpresa repleta de mistério e aventura faz-me brilhar mais os olhos que a imponência de um anel de brilhantes, fascinam-me os impossíveis, as distancias, fazer do longe perto. Mudar o que era inacessível e inacreditável. Não tenho nuncas, não sei o que são imponderáveis. A vida deu-me tantos abanões e testou-me divertida tantas vezes que sempre que digo nunca, o destino prova-me o contrário e ri-se de mim. 

Sou eu que escrevo a história da minha vida, não deixo que decidam por mim, que me escolham os itinerários e decidam os trajectos, a cada dia acrescento-lhe um capítulo, uma memória, pessoas, gestos, afectos que guardo no mais intimo de mim, só para mim, secretamente. Quero muito a quem me gosta, sou dedicada a quem me estima, desprezo quem me ignora, sou boa observadora, dedicada nos pormenores, atenta, grata pelo que tenho e sobretudo pelo que vivo.

Não há "E foram felizes para sempre". Não acredito nisso. Já acreditei aos 19 anos quando saí de casa. Não importa... sei agora que os sonhos mais loucos se escrevem com a tinta do coração e os momentos mais felizes também. E é a isso que se chama efectivamente viver.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

E agora fiquei doce, doce...



E ontem tive direito a visita inesperada no meu local de trabalho.

Ao final da tarde recebo a seguinte sms.

- Vem ter comigo ao estacionamento. Junto ao teu carro. Traz café da máquina.
- Estás aqui no hospital?
- Menos perguntas. Queres um beijo? Anda.Voa. Estou de serviço não tenho muito tempo. 
- Pera 5 minutos. Vou tentar sair.

Quando cheguei junto do meu carro, fui surpreendida com dois pasteis de nata quentinhos que comemos sentados no rebordo do muro acompanhados de café aguado em copo de plástico da máquina do meu serviço. Soube-me bem. Aquele pastel de nata soube-me a imensa generosidade, partilha, amizade, presença, muito carinho, protecção, dedicação e cuidado. Muita coisa na simples massa de um pastel de nata. E mais ainda para desvendar na pessoa por detrás do gesto de quem vem por alguns minutos apenas, acredita que vale a pena fazer-me a surpresa e traz na mão a simplicidade de um pastel de nata, só isso.

Oportunidade única...



Oportunidade de negócio. 

A propósito do Brad Pitt se encontrar solteiro e continuar giro que dói apesar dos cinquentas já no corpinho, uma Companhia Aérea Norueguesa criou uma campanha de marketing em que faz publicidade a voos para los Angeles de uma forma original. Haja criatividade e imaginação...

A vida é bela e o Brad está solteiro!

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Arrumar [TE]...


14-12-2015



Abri as janelas. Deixei entrar a luz e o vento fresco que soprava lá fora. Ganhei finalmente coragem, forças lá onde nem eu sei para a limpeza geral que queria fazer. Porque era preciso. Arrumei tudo. Arejei a casa. Substitui recordações. Encafuei fotos, lugares e poemas fofinhos no lugar mais escuro que encontrei. Engasguei-me umas quantas vezes com as lágrimas, deixei escapar um pontapé de raiva numa bisnaga de gel do cabelo, amarfanhei o coração e engoli em seco todas as vezes que amachuquei posters e bilhetes de avião. Solucei ao arrumar sonhos. Guardei tudo no sótão das emoções numa caixa onde escrevi a caneta azul, parvalhona de merda em letras garrafais, bonitinhas, bem alinhadas. Perfeitas. Suficientemente longe da vista para não mais recordar mas ali perto do coração para se algum dia me esquecer. Arrumei-te.

E preparei-me para ser feliz.

Keep on dreaming girl...




A sabedoria suprema é ter sonhos bastante grandes para não se perderem de vista enquanto os perseguimos.

William Faulkner

Assustam-me pessoas que não têm um único sonho, que não têm por objectivo conseguir nada, ir a algum lado, saírem do seu espaço, da sua vida regular, alcançarem algo especial ou diferente. Trabalham para viver/sobreviver e só por o conseguirem cumprem o sonho. Eu não. Tenho sonhos, realizo sonhos, risco sonhos na minha lista, reformulo a lista à medida que os concretizo e sem nunca parar acrescento de imediato mais sonhos. Sobram-me ideias, acresce-me motivação, falta-me tempo, dinheiro, capacidade de resposta, ajuda. 

Os meus são suficientemente grandes para ainda não os ter conseguido realizar mas não tão grandes que se tornem impossíveis ou irrealizáveis. Situam-se entre o continua a esbracejar que um dia chegas lá, e definitivamente o, se deixas de dar aos braços não vais a lado nenhum e provavelmente ainda te afogas. Assim...

O melhor é mesmo continuar a sonhar.

Desabafo de gaja...







Parece que já é Outono. 

Apetece collants coloridos, botas, vestidos. Apetece em cada inicio de estação renovar o guarda roupa e fazer um refresh nos roupeiros eliminando o que já não se gosta e que não faz sentido ficar. Por isso aqui a rapariga foi tomar uma banho de lojas, de moda, dar sentido ao feminino em género e ver se alguma coisa lhe mexia com os sentidos e aliviava a carteira. Veio de lá destroçada. Mergulhada numa profunda e amarga desilusão. Não viu nadinha que a motivasse para uma compra perdulária. Zerinho. Mãos a abanar de sacos.

Era tudo largo, gigante, comprido, excesso de padrões, de folhos, de tecido. Olhava para aquilo e parecia-se vestida com as batas da avó Emília, ou os vestidos da tia Sãozinha. Parece que o look para este Outono/Inverno é o visual Morticia Adams.

domingo, 25 de setembro de 2016

Nada...





Nunca se sabe aquilo que basta. Também pode ser que nada baste.
Até pode suceder que a morte não seja bastante.

Herberto Helder

Eu e ele a trocarmos mensagens...
Beca, beca. Beca, beca.
Uma sms para lá, uma sms para cá. E mais outra.

Alguns minutos depois.

- Estás a conduzir!
- Yap.
- Posso te autuar sabias?
- Sei, mas adoras-me.
...
(Silêncio) - vários minutos de espera.

-  Não é verdade que adoras?
- Tão segura!
- Não sou. Mas adoro parecer.
- Adoro-te sim muito mais do que tu pensas. E fica descansada. Não faço nada.
- Nada? Não sei se nada é bom.
- Tu não existes!

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Sempre a ir... imperdoável é desistir.




imperdoável é o que não vivi, 
imperdoável é o que esqueci,
imperdoável é desistir de lutar, 
imperdoável é não perdoar, 
imperdoável é o que abandonei,
 imperdoável é dispensar a razão, 
imperdoável é pisar quem está no chão,
 imperdoável é esquecer quem bem nos quer,
 imperdoável é não sobreviver...

Jorge Palma


                                       

Imperdoável é deixar de acreditar que amanhã será um dia fantástico, que as minhas lutas diárias vão ser bem sucedidas, que na luta desigual entre a vida e a morte ganha a mais bela e não a mais forte e que o que é justo vai sobrepor-se a toda e qualquer injustiça. Imperdoável é não pensar que a vida vai sempre ser capaz de surpreender-me com coisas boas, que quem desejo vai ficando sempre do meu lado, que quem preciso não vai desistir de mim, que vou ter sempre beijos que não se esgotam no acto de beijar, que cada dia vai ser único e inteiramente meu, que palavras amigas estão mesmo ali ao virar da esquina, que abraços fortes ficam sempre à distância máxima de um pedido, que os braços serão sempre capazes de longos abraços, que não vai haver gente maldosa e mal intencionada, que vai haver sempre quem me faça soltar uma gargalhada, quem me dê a mão quando mais preciso, quem me ouça quando eu só quero desabafar ou que no silêncio diga tudo o que preciso ouvir, quem fale com os olhos e veja com as mãos, quem seja de tal modo especial que me preencha os dias e as noites mesmo na ausência, quem me repita constantemente em voz sussurrada ao ouvido, tu não existes. Quem sinta a minha falta e me faça sentir a falta.



Imperdoável é deixar de acreditar nas pessoas, duvidar da sinceridade, ter raiva à distância, perder tempo com coisas insignificantes e desgastar-se em zangas e conflitos que não levam a lado nenhum. Imperdoável é perder a esperança no futuro, esquecer a magia que há no brilho da lua e ignorar o calor do sol. Imperdoável é olhar o mar e não sentir o sabor a sal nos salpicos da rebentação e o cheiro a maresia em cada onda. Imperdoável é desistir dos sonhos, das viagens que ainda estão por fazer, dos fins de semana que esperam por nós, das caminhadas a lugares onde ainda não fui. Imperdoável é deixar coisas por fazer com medo do que ainda não se sabe muito bem, não cumprir vontades por regras rígidas de outros, desistir de escolhas por futuros arrependimentos, pensar demais e viver de menos. Imperdoável é esquecer que somos mortais e que a vida tem a duração de um fósforo, que raramente nos oferece segundas oportunidades e que o que hoje nos agrada amanhã pode nos deixar infelizes. Imperdoável é perder a alma de criança, passar pela vida de forma responsável e demasiado séria. Imperdoável é baixar os braços, perder as forças e desistir de acreditar. Imperdoável é passar pela vida como se não se vivesse. Imperdoável é não viver e não ser feliz.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Upss cortei-me...




Anda uma rapariga à cata de uma pedrinha mais bonita, mais reluzente no meio de uma amálgama de seixos e pedras roladas que possa ter algum significado especial e lhe acrescente a ela valor. Uma coisa assim em bom que lhe desperte o interesse. Encontra uma cheia de brilho, que brilha ao sol, que brilha à chuva, que reflecte o luar e a luz da manhã, acha até por dias que encontrou um diamante. Assim uma coisa extraordinária quase impossível de achar; com dureza 7 para enfrentar as dificuldades da vida, capaz de se deixar lapidar e biselar pela mão certa e apaixonada, capaz de fazer frente a tudo, e lado a lado com ela a todas as outras pedras do caminho. E na volta depois de dar uma volta completa a segurar a dita pedrinha brilhante, repara melhor... é vidro polido, daquele ordinário a quem deram uma esfregadela para ficar brilhante, coisa para não ter qualidade nenhuma, nem merecer o tempo nem a capacidade da rapariga em a segurar. Tanto brilho, e afinal não passa de um calhauzinho com dois olhos.. e dois pés...

Deixa-a cair. Outra mão voltará para a segurar.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Vai não vai, e o cansaço fica...






"A morte usa-me incessantemente"
 
 Jorge Luís Borges

A Marta salta para o degrau da reanimação e inicía a reanimação cárdio-respiratória, decorrem 5 minutos, vejo-lhe o esforço. Sua as estopinhas e escorrem-lhe lentamente pela testa e pescoço as primeiras gotas de suor, está na hora de a substituir. Revesamo-nos enquanto a anestesista procede à entubação oro-traqueal do doente, laringoscópio - ouço-a pedir ao longe. o Pedrinho concentrado carrega o desfibrilhador. o Duarte prepara epinefrina, adrenalina para estimulação cardíaca. Insistimos. Ninguém desiste. Não se ouvem vozes na sala. O mundo em suspenso numa vida em suspenso. Aqui e ali o barulho de plástico ou papel a rasgar, do material que se vai encertando à medida que é necessário. A anestesista dá as ordens de comando com voz segura mas trémula na fala. Decidida mas entrecortada por monossílabos e gaguejos. Insuflar cânula, dar ao ambu, ventilar, monitorizar, medir oxímetria, gelafundina uma unidade em perfusão, a correr rapidamente. E já passaram 15 minutos. O tempo demora quando se espera por alguma coisa e voa quando se morre. Continuamos a insistir. O Duarte faz-me sinal para descer. Insisto mais uma vez, não saio logo, digo-lhe - espera. Sinto o cabelo colado ao pescoço, encharcado, sinto o suor escorrer-me pelas costas abaixo e à frente pelo meio das mamas até ao umbigo. Suor molhado, frio. Cheiro mal. Tanto cansaço. Fecho os olhos por uns segundos, é suficiente. O cirurgião olha para a anestesista, a anestesista olha para o cirurgião, num diálogo de surdos. Muito pouco se diz mas muito se fala sem nada dizer. O Duarte substitui-me no degrau da reanimação, já chega, salta daí. Obedeço. Paro e ele substitui-me. Sinto a pele a colar, sinto as mãos sujas e o corpo peganhento. Sinto a morte tão perto. E tudo continua. Não se desiste, aqui não somos malta de desistir. Passam mais dez minutos, a Judy avança e substitui o Duarte que desce com a camisa fora das calças e uma mancha de suor nas costas. Vejo-lhe o azul escuro do cós das boxers, e os pelos do peito por entre a abertura da camisa - brilham reluzentes do suor. De cada lado dos braços uma mancha enorme desenha-se na camisa. A Judy está num esforço tremendo, diz que sente câimbras nos braços e nas mãos e precisa que a substituam. A Picolé empurra-a e diz-lhe salta daí, agora sou eu... mulher pequenina, metro e meio de gente, cheia de genica, salta em cima do tórax do doente e afunda-se com uma força, e uma raiva incríveis, desfibrilhador novamente. 1, 2, 3. Insiste, não desiste, numa sequência interminável que se arrasta em minutos que parecem não ter fim.

Mas têm fim.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Erros fatais...





Chama-se Mariana.

Apaixonada pela vida, pelo amor, e mais ainda por ele. 
Há anos que repartem dias, horas dos dias, algumas noites, histórias a contar, olhares.
Ela ama-o. Ele não. Diz-lhe que gosta dela. Ela acredita que gostar é mais ou menos bom.

Envolvem-se em mais um fim de tarde já quase crepúsculo. O entardecer traz o final do dia e a paz, e com ele o toque das mãos que deslizam pelo corpo, pelos cabelos, os beijos sôfregos, a paixão e o desejo acompanhados das mesmas gargalhadas de sempre, do mesmo sorrir e do mesmo sabor. 

Ela beija-o. Mais e mais. Sente-lhe a vontade e o prazer. Envolvem-se mais ainda. Corpos e pele respiram a um. Ritmadamente.
Ao longe, sussurrado baixinho, ouve-lhe a voz entrecortada por gemidos, e pela respiração que ele já não controla.

Tão bom. Ai tão bom, Susana!

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Chama-se Margarida mas podia chamar-se outra coisa qualquer...




Chama-se Margarida, tem 35 anos e acabou de me morrer nos braços. Literalmente. Enquanto eu pobre de mim tentava por todos os meios convencê-la com a quantidade de frases feitas e bem decoradas que saco da cartola como por magia para confortar gente desesperada e de certa forma até arrependida. Não vais morrer Margarida, morrer vamos todos nós, hoje não é o teu dia porque vamos conseguir salvar-te, faz o teu trabalho, esforça-te, luta, que garanto-te que nós vamos fazer o nosso até ao fim. 
Aqui ninguém desiste, não desistas tu...

Olha-me nos olhos e entre o sofrimento atroz e a dificuldade de respirar evidente diz-me que não viveu, que se arrepende das apostas que fez, da vida que teve. Todas erradas segundo ela, e remata, estava farta desta "não vida". Não quero viver assim. Volto a ir buscar as palavras que guardo para estas ocasiões, demasiado gastas. É sempre possível recomeçar, é sempre possível ser feliz depois das escolhas erradas, passado é passado, e Margarida tens um futuro para escrever pela frente. Falo com convicção porque acredito de facto nisto. Ela pelos vistos não.

Abana a cabeça, abre e fecha os olhos várias vezes como a tentar falar com o olhar aquilo que a boca já não consegue dizer, vejo-lhe um fio de lágrimas que escorrem pelos olhos, deslizam simplesmente, devagar, sem soluços ou ruído de choro. Apercebo-me que se deixa ir na dor e na inconsciência do abandono. Chamo-a, Margarida Margarida, estás a ouvir-me? Vamos embora a lutar, tens uma vida pela frente, um Rafael de 5 anos que precisa de uma mãe. Margarida não gostavas de ir a Nova Iorque? Quando te livrares disto tudo que tal viajares até Nova Iorque. Eu adorava sabes? Ainda não fui. É um dos meus muitos sonhos por realizar.

Sinto que já não me ouve, ausentou-se para parte incerta algures num lugar que não imagino onde seja. Espero que melhor, mais feliz, com menos sofrimento e onde todos os sonhos sejam possíveis. Deixo ficar a minha mão na dela. Oiço o monitor a alarmar, insistente, constante, num traçado isoélectrico que anuncia o fim que já antevi. À minha volta desiste-se. Já se tinha desistido antes, mas isso eu não lhe disse. Foi melhor assim, oiço. Sorte a dela. Graças a Deus não demorou tanto como o previsto. Grande sorte mesmo. 

Para mim guardo a certeza que tomar medicamentos para morrer não é uma boa ideia, sobretudo quando se sabe bem quais os certos, que provocam a morte por hemorragias internas irreversíveis e a falência de todos os órgãos internos de forma lenta e gradual num sofrimento insustentável. Não foi bonito de se ver. Felizmente foi muito mais rápido que o habitual.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Mais ou menos uma ou duas coisas que não entendo...




A gente pode morar numa casa mais ou menos, numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos, e até ter um governo mais ou menos. 
A gente pode dormir numa cama mais ou menos, comer um feijão mais ou menos, ter um transporte mais ou menos, e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.

A gente pode olhar em volta e sentir que tudo está mais ou menos... 
Tudo bem!

O que a gente não pode mesmo, nunca, de jeito nenhum... é amar mais ou menos, sonhar mais ou menos, ser amigo mais ou menos, namorar mais ou menos, ter fé mais ou menos, e acreditar mais ou menos. 
Senão a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos.

Chico Xavier



já fui demasiado tempo quase. quase que fomos apaixonados, quase que estivemos juntos, quase que o mundo foi nosso, quase que realizámos todos os nossos sonhos. quase que era impossível ser-se mais feliz. quase de tanta coisa. só não fomos quase amantes. não fomos quase amigos. não fomos quase felizes. e não fomos quase nós. fomos de verdade isso tudo. quase tudo e quase nada. nada de quase tudo. 

estranho-me...

agora quero tudo. sôfrega do que deve ser meu por direito. não quero nada mais ou menos. quero tudo mais porque é o que quero para mim. porque é o que mereço. e porque não me vou contentar com menos. exijo tempo. estabeleço regras e não abdico de nada que eu sinta que preciso. e ele tenta, ele cede, ele deixa-se ir. faz o melhor que pode pelo imenso quase.

e agora que posso ter mais, quase tudo, tanto de todo o quase, mantenho ainda a vontade do que já foi tanto mas muito menos. e isso é que eu muito menos entendo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Era tão bom não era...





Encontrei finalmente uma pessoa que trabalha mais horas por semana que eu. 
Se isso é bom ? 
Bom... 
Continuo a fazer quase tudo o que gostaria de fazer acompanhada, sozinha!

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Se a parvoíce pagasse imposto...




Hoje na sala de pausa...

- Estou cheia de sono, vou tirar um café. Alguém quer?

(a minha colega LSD aos gritos do corredor para a entrada da sala de pausa)

- Eu, Eu! Preciso tanto de um. Traz-me um comprido e com duas bolas.

( o café pode tirar-se longo ou curto e com mais ou menos "bolas" - regulador de açúcar )

Gargalhada geral claro está.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Tive amores que fizeram fitas.Outros só cenas.Este leva-me para dentro de um filme de Hollywood...




Tenho por principio não enganar ninguém, nem induzir ninguém em erro. Não o faço e também não gosto que mo façam. Tento ser o mais honesta que consigo com as pessoas e nas relações. O que há para ver está à vista. É pegar ou largar. Como tal, e porque não amo o rapazinho com quem tenho partilhado uns dias, umas noites, uns passeios e umas caminhadas durante umas quantas semanas fiz questão de deixar bem claro que gosto muito da pessoa em si, que gosto muito da companhia em particular, que me sinto bem, que há química e física and so on, que ele me faz bem e deixa muito feliz mas que por enquanto é neste patamar que estamos e o hoje é o hoje e o amanhã logo se vê.

Em resultado desta conversa a dois, tivemos dois dias de burro meio amarrado, ele sem ligar, eu sem lhe ligar (sim sou orgulhosa qb) e sinceramente achei que a viagem tinha arrefecido e provavelmente as voltas à rotunda iam terminar por aqui. Mas não.

A história continua...

...

Ontem trabalhei até às 22 horas, e no final de mais um dia longo, cansada, ainda fardada ( porque como ia para casa tomar um duche nem me dei ao trabalho de mudar de roupa ) e já no regresso a casa numa via de apenas letras e números tal e qual como em Nova Iorque where the streets have no names oiço uma sirene atrás do meu carro, vejo uma luz intensa azul a rodar e percebo que é para encostar já a seguir numa escapatória de uma bomba de combustíveis. Tento olhar pelo espelho retrovisor e só vejo uns faróis e a tal luz intensa azul. Não percebo que carro é, não me parece ser da policia e muito menos entendo o que é que eu ia a fazer de mal que mereça ser mandada parar - como quem não deve não teme, paro imediatamente. E fico sem me mexer à espera.

Com os faróis desligados consigo observar pelo espelho o carro que me mandou parar. Um Clio descaracterizado, já  muito velho, apenas com a rotativa azul no tejadilho por cima da porta do condutor. De lá de dentro sai o matraquilho azul aqui da rapariga. Fardado. E de imediato desatei a rir com a cena. Ó pá tu és completamente doido, pregaste-me um susto do caraças, eu não ia a fazer nada de mal mas sei lá... anda tudo doido. Prega-me um valente beijo pela janela do carro e diz-me isto: tenho que ir miúda, estou de serviço. Só saio às 23h. Só te queria dizer isto e tinha que ser pessoalmente:  Não desistas já. Não desistas sim? Não desistas de mim. E eu gaguejei, tremi que nem varas verdes, engoli em seco e não hesitei em responder : Porra, contigo a deixares-me assim quem é que pode pensar em desistir!