quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Chama-se Margarida mas podia chamar-se outra coisa qualquer...




Chama-se Margarida, tem 35 anos e acabou de me morrer nos braços. Literalmente. Enquanto eu pobre de mim tentava por todos os meios convencê-la com a quantidade de frases feitas e bem decoradas que saco da cartola como por magia para confortar gente desesperada e de certa forma até arrependida. Não vais morrer Margarida, morrer vamos todos nós, hoje não é o teu dia porque vamos conseguir salvar-te, faz o teu trabalho, esforça-te, luta, que garanto-te que nós vamos fazer o nosso até ao fim. 
Aqui ninguém desiste, não desistas tu...

Olha-me nos olhos e entre o sofrimento atroz e a dificuldade de respirar evidente diz-me que não viveu, que se arrepende das apostas que fez, da vida que teve. Todas erradas segundo ela, e remata, estava farta desta "não vida". Não quero viver assim. Volto a ir buscar as palavras que guardo para estas ocasiões, demasiado gastas. É sempre possível recomeçar, é sempre possível ser feliz depois das escolhas erradas, passado é passado, e Margarida tens um futuro para escrever pela frente. Falo com convicção porque acredito de facto nisto. Ela pelos vistos não.

Abana a cabeça, abre e fecha os olhos várias vezes como a tentar falar com o olhar aquilo que a boca já não consegue dizer, vejo-lhe um fio de lágrimas que escorrem pelos olhos, deslizam simplesmente, devagar, sem soluços ou ruído de choro. Apercebo-me que se deixa ir na dor e na inconsciência do abandono. Chamo-a, Margarida Margarida, estás a ouvir-me? Vamos embora a lutar, tens uma vida pela frente, um Rafael de 5 anos que precisa de uma mãe. Margarida não gostavas de ir a Nova Iorque? Quando te livrares disto tudo que tal viajares até Nova Iorque. Eu adorava sabes? Ainda não fui. É um dos meus muitos sonhos por realizar.

Sinto que já não me ouve, ausentou-se para parte incerta algures num lugar que não imagino onde seja. Espero que melhor, mais feliz, com menos sofrimento e onde todos os sonhos sejam possíveis. Deixo ficar a minha mão na dela. Oiço o monitor a alarmar, insistente, constante, num traçado isoélectrico que anuncia o fim que já antevi. À minha volta desiste-se. Já se tinha desistido antes, mas isso eu não lhe disse. Foi melhor assim, oiço. Sorte a dela. Graças a Deus não demorou tanto como o previsto. Grande sorte mesmo. 

Para mim guardo a certeza que tomar medicamentos para morrer não é uma boa ideia, sobretudo quando se sabe bem quais os certos, que provocam a morte por hemorragias internas irreversíveis e a falência de todos os órgãos internos de forma lenta e gradual num sofrimento insustentável. Não foi bonito de se ver. Felizmente foi muito mais rápido que o habitual.

22 comentários:

  1. estou arrepiada..e profundamente triste,,por ela e todas a margaridas deste mundo ..

    Paz para ela ..e abraço forte para ti..

    Ana

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    1. Terapia das Palavras: Há muitas Margaridas por aí... quase todos os turnos temos uma, ou um...

      Beijinho Ana

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    1. Laura Ferreira: Uma urgência é um local duro. Acredita no que te digo.

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  3. Alex:A vida é lixada... Que esteja em paz agora...

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    1. Alex: Por ser lixada e todos sabermos isso é que é preciso aprender a suavizar, descomplicar.

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  4. Eu não a quero julgar nem sei da história dela mas...será que não haveria outra saída? Os pequenos ainda sofrem mais :(

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    1. PM: Há sempre outra saída. Só a morte não tem saída.

      Beijinhooooo PM
      Já de férias? Ou já de regresso?

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    2. A morte e os impostos...

      Pois é, já de regresso, a levar com tempo de Outono e a sonhar com praia :'(

      Beijos :*

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    3. PM: Aqui os dias também já estão muito mais pequenos com cheirinho a Outono. Saio do hospital ao fim do dia e já é noite cerrada e uma humidade do catano...

      Beijinhoooo P.

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  5. Já perdi alguém que não quis pedir ajuda, que se cansou de viver, mas que tinha alternativas e não as viu.
    Gosto de a ler.
    Maria João

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    1. Maria João: Já tive 3 colegas de trabalho que se suicidaram... Na saúde então é demasiado fácil desistir... e sabe-se bem fazer as coisas, há acesso fácil ao que é preciso... enfim....

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  6. Eu gosto tanto destes teus textos... porque são tão humanos! Sabes, eu também tive uma "não vida" em que também achava que todas as minhas escolhas tinham sido erradas... Mas não desisti porque não desisto facilmente das coisas, muito menos da vida. É uma luta diária mas, no fim do dia, é um dia ganho e não perdido!

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    1. Gata: Não desistas nunca. Tu és a minha gatinha daqui dos blogs e dizem que os gatos têm 7 vidas, por isso usa-as todas.

      Beijinhoooo

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  7. Que pena... que pena... Tanta coisa boa para se viver e as pessoas insistem em por termo à vida pelo que já passou... que pena. Que esteja bem agora.
    Beijinho AC *

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    1. SuperSónica: Foi uma escolha dela. Aprendi a respeitar as escolhas de cada um. A vida ensinou-me a aceitar.

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  9. É preciso aprender com a vida. O que há de bom e o que há de ruim que ela oferece são para nossos aprendizados diários. Tem pessoas que vivem a vida e não conseguem aprender com ela _ a vida. Triste. Muito triste.
    Estou sempre a te ler AC. Aqui no Brasil as vezes encontramos com profissionais tão desumanizados que seus relatos não me deixam perder a fé que realmente em todas as profissões há todo tipo de profissionais. Beijos fraternos de uma brasileirinha lá das bandas das Minas Gerais :*

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    1. Andréa Ribeiro: Obrigada pela visita. É sempre agradável saber que nos lêem do outro lado do oceano. Há bons e maus profissionais em todo o lado, mas a verdade é que felizmente há muito mais bons do que maus, e por esses vale sempre a pena confiar e valorizar.

      Beijinho:))

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  10. Pode parecer parvo, mas não tenho a certeza que tenha feito uma má escolha - talvez o método (porque se percebi bem foi muito doloroso) poderia ter sido outro, e velho como sou fico com inveja de não me ter dado os 15 anos a menos que não vai gozar, mas acho que a morte é muito subvalorizada ou a vida (algumas pelo menos) muito sobrevalorizada. Essa cena de a "vida vale sempre a pena" é muito relativa - relativa da parte de quem acredita que vale a pena.

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    1. Solo: Tens que acreditar que vale a pena. Porque vale mesmo. Está muito nas nossas mãos darmos-lhe um sentido ( à vida), mudarmos o que podemos mudar e aceitarmos também o que está fora do nosso controlo. Há todos os dias momentos, pessoas, sinais, que passam por nós e que são fantásticos, temos que os saber aproveitar, valorizar, e tirar partido deles para nos apoiarmos e fortalecermos para o que é menos bom.

      A vida vale sempre a pena, e olha que eu lido com a morte todos os dias e mesmo quem tem a vida por um fio quer sempre mais uns minutos...

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.