segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Vai não vai, e o cansaço fica...






"A morte usa-me incessantemente"
 
 Jorge Luís Borges

A Marta salta para o degrau da reanimação e inicía a reanimação cárdio-respiratória, decorrem 5 minutos, vejo-lhe o esforço. Sua as estopinhas e escorrem-lhe lentamente pela testa e pescoço as primeiras gotas de suor, está na hora de a substituir. Revesamo-nos enquanto a anestesista procede à entubação oro-traqueal do doente, laringoscópio - ouço-a pedir ao longe. o Pedrinho concentrado carrega o desfibrilhador. o Duarte prepara epinefrina, adrenalina para estimulação cardíaca. Insistimos. Ninguém desiste. Não se ouvem vozes na sala. O mundo em suspenso numa vida em suspenso. Aqui e ali o barulho de plástico ou papel a rasgar, do material que se vai encertando à medida que é necessário. A anestesista dá as ordens de comando com voz segura mas trémula na fala. Decidida mas entrecortada por monossílabos e gaguejos. Insuflar cânula, dar ao ambu, ventilar, monitorizar, medir oxímetria, gelafundina uma unidade em perfusão, a correr rapidamente. E já passaram 15 minutos. O tempo demora quando se espera por alguma coisa e voa quando se morre. Continuamos a insistir. O Duarte faz-me sinal para descer. Insisto mais uma vez, não saio logo, digo-lhe - espera. Sinto o cabelo colado ao pescoço, encharcado, sinto o suor escorrer-me pelas costas abaixo e à frente pelo meio das mamas até ao umbigo. Suor molhado, frio. Cheiro mal. Tanto cansaço. Fecho os olhos por uns segundos, é suficiente. O cirurgião olha para a anestesista, a anestesista olha para o cirurgião, num diálogo de surdos. Muito pouco se diz mas muito se fala sem nada dizer. O Duarte substitui-me no degrau da reanimação, já chega, salta daí. Obedeço. Paro e ele substitui-me. Sinto a pele a colar, sinto as mãos sujas e o corpo peganhento. Sinto a morte tão perto. E tudo continua. Não se desiste, aqui não somos malta de desistir. Passam mais dez minutos, a Judy avança e substitui o Duarte que desce com a camisa fora das calças e uma mancha de suor nas costas. Vejo-lhe o azul escuro do cós das boxers, e os pelos do peito por entre a abertura da camisa - brilham reluzentes do suor. De cada lado dos braços uma mancha enorme desenha-se na camisa. A Judy está num esforço tremendo, diz que sente câimbras nos braços e nas mãos e precisa que a substituam. A Picolé empurra-a e diz-lhe salta daí, agora sou eu... mulher pequenina, metro e meio de gente, cheia de genica, salta em cima do tórax do doente e afunda-se com uma força, e uma raiva incríveis, desfibrilhador novamente. 1, 2, 3. Insiste, não desiste, numa sequência interminável que se arrasta em minutos que parecem não ter fim.

Mas têm fim.

6 comentários:

  1. Pior seria viver sem se tentar tudo por tudo, porque tal seria não viver. Umas vezes há sucesso outras não, pelo meio sobra o esforço, reconhecido ou não, é a medida traduz o valor que temos nesta breve passagem.

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    1. L'Enfant Terrible: Estou cansada de tanto esforço mal sucedido. Poucas vezes ganhamos...

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  2. Nunca se esta preparada... nunca se desiste!
    São lutadores vocês!

    Beijinhos

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    1. Utena: Lutadores sim, mas derrotados quase sempre. Esta luta que travamos é muito injusta e desigual.

      Beijinhoooo

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  3. que desabafo...vocês fazem tudo, mas quando é a hora deles já não há mais nada....será que os pacientes fazem algum esforço para ficar ou desistem?

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    1. SuperSónica: Cada vez mais acredito que o que tem de ser tem muita força e não adianta contrariar o destino. Já vi tanta coisa...

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.