"A morte usa-me incessantemente"
Jorge Luís Borges
A Marta salta para o degrau da reanimação e inicía a reanimação cárdio-respiratória, decorrem 5 minutos, vejo-lhe o esforço. Sua as estopinhas e escorrem-lhe lentamente pela testa e pescoço as primeiras gotas de suor, está na hora de a substituir. Revesamo-nos enquanto a anestesista procede à entubação oro-traqueal do doente, laringoscópio - ouço-a pedir ao longe. o Pedrinho concentrado carrega o desfibrilhador. o Duarte prepara epinefrina, adrenalina para estimulação cardíaca. Insistimos. Ninguém desiste. Não se ouvem vozes na sala. O mundo em suspenso numa vida em suspenso. Aqui e ali o barulho de plástico ou papel a rasgar, do material que se vai encertando à medida que é necessário. A anestesista dá as ordens de comando com voz segura mas trémula na fala. Decidida mas entrecortada por monossílabos e gaguejos. Insuflar cânula, dar ao ambu, ventilar, monitorizar, medir oxímetria, gelafundina uma unidade em perfusão, a correr rapidamente. E já passaram 15 minutos. O tempo demora quando se espera por alguma coisa e voa quando se morre. Continuamos a insistir. O Duarte faz-me sinal para descer. Insisto mais uma vez, não saio logo, digo-lhe - espera. Sinto o cabelo colado ao pescoço, encharcado, sinto o suor escorrer-me pelas costas abaixo e à frente pelo meio das mamas até ao umbigo. Suor molhado, frio. Cheiro mal. Tanto cansaço. Fecho os olhos por uns segundos, é suficiente. O cirurgião olha para a anestesista, a anestesista olha para o cirurgião, num diálogo de surdos. Muito pouco se diz mas muito se fala sem nada dizer. O Duarte substitui-me no degrau da reanimação, já chega, salta daí. Obedeço. Paro e ele substitui-me. Sinto a pele a colar, sinto as mãos sujas e o corpo peganhento. Sinto a morte tão perto. E tudo continua. Não se desiste, aqui não somos malta de desistir. Passam mais dez minutos, a Judy avança e substitui o Duarte que desce com a camisa fora das calças e uma mancha de suor nas costas. Vejo-lhe o azul escuro do cós das boxers, e os pelos do peito por entre a abertura da camisa - brilham reluzentes do suor. De cada lado dos braços uma mancha enorme desenha-se na camisa. A Judy está num esforço tremendo, diz que sente câimbras nos braços e nas mãos e precisa que a substituam. A Picolé empurra-a e diz-lhe salta daí, agora sou eu... mulher pequenina, metro e meio de gente, cheia de genica, salta em cima do tórax do doente e afunda-se com uma força, e uma raiva incríveis, desfibrilhador novamente. 1, 2, 3. Insiste, não desiste, numa sequência interminável que se arrasta em minutos que parecem não ter fim.
Mas têm fim.
Pior seria viver sem se tentar tudo por tudo, porque tal seria não viver. Umas vezes há sucesso outras não, pelo meio sobra o esforço, reconhecido ou não, é a medida traduz o valor que temos nesta breve passagem.
ResponderEliminarL'Enfant Terrible: Estou cansada de tanto esforço mal sucedido. Poucas vezes ganhamos...
EliminarNunca se esta preparada... nunca se desiste!
ResponderEliminarSão lutadores vocês!
Beijinhos
Utena: Lutadores sim, mas derrotados quase sempre. Esta luta que travamos é muito injusta e desigual.
EliminarBeijinhoooo
que desabafo...vocês fazem tudo, mas quando é a hora deles já não há mais nada....será que os pacientes fazem algum esforço para ficar ou desistem?
ResponderEliminarSuperSónica: Cada vez mais acredito que o que tem de ser tem muita força e não adianta contrariar o destino. Já vi tanta coisa...
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