sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Discussão a feijões...






Doente entrada na sala de emergência imobilizada em plano duro, vitima de despiste seguido de capotamento, desencarcerada no local por uma equipa de resgate dos bombeiros e trazida pelo Inem. À entrada, orientada, consciente, parâmetros vitais estáveis, valores tensionais mantidos e score 15. Apresentava tala imobilizadora no membro inferior direito por possível fractura da diáfise do fémur, colar cervical para estabilização apenas, mas sem sinais de lesão, e escoriações várias na face e crânio com provável fractura dos ossos próprios do nariz e perda de peças dentárias visíveis. 

Tem 34 anos e chama-se Ana Isabel. Gosto de Anas e uma Ana nunca vem só, vou dizendo. E acrescento, há todo o tipo de Anas, Ana Margarida, Ana Cristina, e até Ana Isabel. Brinco com ela, com o nome dela e apresento-me, sou a enfermeira ac e vamos cuidar de ti. Ela deixa escapar um sorriso tímido com a coincidência. Vou canalizando uma veia, tirando sangue para análise e despistagem de substâncias proibidas (que agora em caso de acidente são obrigatórias) controlando valores de oxímetria e tensão arterial no monitor e vamos conversando. Bipa-se a Ortopedia e contacta-se com urgência a Radiologia.

Então Ana como te aconteceu isto... 

Começa a falar e a soluçar compulsivamente. Entre palavras que não entendo, metade ditas, metade sussurradas, muito a custo, consigo finalmente perceber o que se passou. Iam a discutir, ela e o marido, numa discussão banal, sem sentido. Quase daquelas macacoso-piolhoso. Infantil e sem interesse como parece que começam todas as discussões. Por nada. A atravessar a ponte Vasco da Gama no sentido para Lisboa e quase a chegarem ao trabalho. Ela vinha a conduzir, ele disse-lhe - vai mais devagar, vais muito depressa, ela disse-lhe - mas só vou a 90, ele disse - mas se eu te digo para ires mais devagar é para ires mais devagar, ela disse - mas quem vai a conduzir sou eu por isso vou à velocidade que quero, ele disse - não vais não, eu vou aqui e se eu digo para ires mais devagar tu vais mais devagar... e foram nisto vários quilómetros até que ela o desafiou e pondo o pé no acelerador esticou a corda um pouco mais... Ele danado com a provocação não vai de modas, num gesto irreflectido puxou o travão de mão, o carro ia a 120 à hora, entrou em derrapagem, deu uma pirueta, ela perdeu de imediato o controlo da direcção, bateu no separador central e a partir daí iniciou um processo de voltas e cambalhotas em que acabaram os dois dentro do carro, presos com o cinto de segurança, de cabeça para baixo e enfiados no meio de uma nuvem de pó dos airbags, de vidros partidos, plásticos do interior e ferros retorcidos. A ultima coisa que ainda o ouviu dizer foi -  ai é assim, então foda-se quem conduz sou eu.

Disse-lhe Ana, isso é muito grave, que vais fazer em relação ao que se passou?
Respondeu-me nada. Ele já tem a conta dele (fracturou as duas pernas e fez uma luxação de um ombro), e eu não vou fazer mais nada. Vamos-nos sentar a falar os dois. Isto é só nosso, por favor não conte nada. Claro que não Ana, brinco com a situação e justifico dizendo que enfermeiras são como os padres, estão sujeitas ao sigilo da confissão.

Para a companhia de seguros foi mais uma participação de sinistro. 
Para a policia um despiste possivelmente por excesso de velocidade.
Para os números das estatísticas, mais um acidente.
Para a Ana um segredo em forma de pesadelo que vai deixar marcas para sempre. Suponho até que irreparáveis.
Para mim que sei a verdade de tudo o que se passou fica uma raiva imensa por quem é capaz de colocar vidas em risco, a sua e as dos outros para não perder a filha da puta de uma discussão a feijões e sobre nada que valha a pena. O amor às vezes é lindo.

15 comentários:

  1. Olá!
    Este teu post serve para refletirmos...

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    1. Paloma Faith: Faz-me sentir raiva... o amor não pode ser isto.

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  2. Mais grave seria se tivessem ido contra alguém que não tivesse culpa nenhuma. Que se discuta tudo bem, que se irritem tudo bem, agora que não se tenha consciência que um gesto desses pode por em risco alguém alheio, é puro egoísmo...Quiçá, depois desta, nunca mais voltem a discutir...

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    1. L'Enfant Terrible: Que pessoa é esta que prefere ferir a perder?

      Duvido... vão ficar ambos com mazelas para toda a vida. Mágoa e raiva que irão minar a vida em comum. Digo eu que nada sei...

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  3. Foda-se....
    As mulheres são casmurras e conseguem tirar um homem do sério (MUITAS vezes), mas depois, há que usar o cérebro e não cometer loucuras.

    Há dias complicados e por vezes as pessoas excedem-se. O complicado é distinguir "o trigo do joio", ou seja, a excepção, da regra.

    Sinceramente, estar numa relação não é pêra doce.
    Mas os actos injustificados têm consequências e eles, tiveram as deles.

    Bjos, senhora enfermeira *

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    1. Sog: Olá old guy. Nada faz desculpar uma atitude destas. impensada, má, perigosa. Uma pessoa assim seja homem ou mulher assusta-me porque não tem limites, não pesa consequências e tem quase a moral de um psicopata.

      Beijinhoooo, amigo.

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    1. sal: Porra mesmo... e o tempo de recuperação que por ali vai haver. Fisica e emocionalmente... se é que alguma vez se recupera de nos terem puxado o travão de mão e feito ver a morte de frente. O que só mesmo por acaso não aconteceu.

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    2. Não há perdão possível AC. Como é que se volta a olhar de frente para alguém capaz de fazer uma coisa assim? Gosto muito das tuas histórias, mesmo as tristes. Esta impressionou-me muito. :(

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  5. Há malta a quem um par de chapadas bem dadas assentava tão, mas tão bem. Que perfeita estupidez...

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    1. PM: Estou contigo. Depois dele estar bom da perna eu partia-lhe a outra... e os dois bracinhos... e nunca mais me voltava a ver, porque de gente perigosa quero mesmo é distancia.

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    1. Rick Forrestal: Car accident. A simple story about a night at my hospital. I'm a nurse Rick, i often talk about that stuff.

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  7. Um ato irrefletido, uma estupidez imensa que vai mudar a vida dos dois e talvez não só dos dois para sempre.
    Maria João

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    1. Maria João: Ela diz que vai perdoar... eu não sei se perdoaria. Mas eu sou eu, e eu tenho um feitio difícil. Que faça o melhor para ela, e tente ser feliz.

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.