segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Qual o valor do perigo?

Cada uma destas pequenas cápsulas ovais de cor branca que se sobrepõem ao longo de todo o comprimento do intestino corresponde a uma dose de 10 gramas de cocaína.


Chega à urgência acompanhada pela Policia do Sef, passada uma hora chega a Policia Judiciária que toma conta da ocorrência e da nossa "doente". Sentada num banco, isolada dos outros doentes, cabeça baixa, aguarda. Aguardamos todos que a medicação que fez assim que chegou faça efeito. Pode levar horas, já tem acontecido levar dias, depende tudo de muita coisa, da capacidade do seu organismo para eliminar resíduos, do peristaltismo intestinal, da reacção do organismo às várias drogas oralmente e endovenosamente administradas. É um processo complexo.

E foi um processo complexo a deglutição de 90 cápsulas de 10 gramas de cocaína, o que perfaz no total 900 gramas de cocaína ingerida em bolotas de pequena dimensão revestidas por uma película transparente, semelhante ao látex mas muito mais fina que o látex normal. Esta apresentava-se como cocaína em pó, mas também há cocaína liquida e muito mais difícil de detectar e claro também muito mais perigosa de transportar. Não vou falar do processo de transporte, de como são detectados os body packers ou correios de droga, na gíria chamados de "mulas", quais os sinais que os denunciam e como é feita a selecção "aleatória" dos escolhidos em cada voo. Isso não é importante para mim. Acabo sempre a falar com eles. Gosto de o fazer. Em diferentes línguas mas quase sempre na minha, em português do Brasil, ou em espanhol Colombiano ou Argentino.

Vou-lhe chamar Denise. É Brasileira, tem 25 anos e um ar bronzeado de menina de Copacabana, cheia de dias de praia, sol, calçadão e vida louca, mas percebo depois que não. Vem de Fortaleza, de uma zona pobre. Fala dos filhos que ficaram por lá. Fala do homem com quem vive que ocasionalmente lhe bate e a explora, fala do trabalho que não tem e dos biscates que faz à noite numa discoteca. Acho que não me quis dizer tudo mas eu entendi o resto. Ou pareceu-me entender, já não sei. Fala-me da proposta que lhe fizeram em fazer esta viagem à Europa. Pergunto-lhe quanto lhe pagam. Responde-me 5 mil euros. Acrescento que para o risco de ser presa e para o risco de morte inerente a todo o processo me parece muito pouco. Acabamos a falar em valores e na relatividade das somas. O que são mil euros no Brasil, ou na Europa. O que são 5 mil euros no Brasil e na Europa. O que compram de facto 5 mil euros no Brasil. A relatividade do valor do dinheiro. Remata com um - vocês europeus não conseguem perceber.

Fecho a boca. Oiço só. Não deixo que os lugares comuns e as palavras óbvias perturbem a enxurrada de palavras que saem, misturadas com lágrimas, misturadas com gestos de menina perdida e um constante olhar vazio. Não faço mais perguntas quando me diz que quando não se tem nada a perder, perder tudo é um mal menor. Fí-lo por necessidade, diz. Para mim 5 mil euros é muito, mas muito dinheiro e mudava muita coisa na minha vida. Poderia ir viver para outra cidade com os meus filhos, poderia fugir desta vida de miséria e de maus tratos, poderia ter uma casa, poderia conseguir ter um trabalho, poderia ter uma loja minha.

Poderia de facto. Mas nesta lotaria da vida, agora só pode mesmo é ser presa. E eu juro que pelo caminho disto tudo senti uma enorme pena. 
...

Todos temos um valor, todos somos comprados, corrompidos por uma soma. Todos sem excepção. Qual seria para cada um de nós o valor do risco ? 1 milhão? Quinhentos mil euros? Ou tão só o valor do medo?

12 comentários:

  1. Este é um dos motivos pelos quais as drogas deviam ser legalizadas!

    Acabar com o tráfego talvez fosse uma ajuda para estas pessoas...

    :)

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    1. C.N.Gil: Sabes que eu concordo contigo? Deviam ser legalizadas e vendidas sobre receita médica em locais próprios e em dosagem de acordo com o grau de dependência de cada um. Evitavam-se assim muitos assaltos, crimes e mortes.

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    2. Exacto!
      E, estando plenamente legalizadas e disponíveis, a preço de custo (porque a maior parte daquelas tretas cresce ou é produzida sem ser preciso grandes cuidados), aí sim, cair em cima de quem as traficasse ilegalmente...
      ...coisa que nem seria necessário, uma vez que sem lucros exorbitantes o trafico deixa de fazer sentido!

      Proibir não funciona! Mesmo proibir só o trafico, continua a não funcionar!
      Mais vale liberalizar! Ao fim ao cabo quem quer consumir há-de sempre arranjar maneira, quem não quer não o irá fazer só porque é livre!

      Mas depois...
      ...e as grandes fortunas que desapareciam se isto fosse feito?

      :)

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    3. C.N. Gil:Com a venda legalizada o tráfico não faria sentido, nem o lucro exorbitante que vem das drogas proibidas teria lugar. Seria tudo mais fácil para quem consome, e para a policia também porque muita da criminalidade vem associada ao tráfico de substâncias proibidas.

      Num país como a Holanda não tens consumos exagerados e diminuiu drasticamente a dependência das drogas e a criminalidade a ela associada. Acho que foi uma excelente medida.

      Temos que nos perguntar - Quem lucra com isto tudo? Quem compra um grama de cocaína e depois a mistura com laxante, barbitúricos, pó de gesso e a transforma em dez gramas para a vender a 20 euros o grama? O lucro é brutal...

      :))

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  2. Além do motivo óbvio da miséria e da pobreza, parece-me que há outro ingrediente na mistura, ingenuidade. Ingenuidade de quem, pela pouca cultura que tem não se apercebe que arrisca a vida e que o dinheiro fácil acarreta riscos. No fundo deverá existir de tudo, quem nada tem a perder, quem tudo tem a perder e quem arrisca porque tem coragem ou desconhecimento para arriscar.

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    1. L'Enfant Terrible: Ingenuidade em acreditar que é possível fazê-lo sem riscos... mas não é. Independentemente do risco de vida o nosso aeroporto é um dos mais difíceis de passar no mundo e o perigo de ser apanhado é real.

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  3. Estas tuas histórias transformam-me, AC. Muito obrigada por as partilhares. Que bom é ler-te.
    Um beijo.

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    1. Susana Rodrigues: Tenho tantas, mas muitas não podem ser contadas. Ou porque são demasiado violentas e tristes, ou porque são histórias facilmente identificáveis por serem de figuram públicas.

      Beijinho*

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    1. PM: Ela transmitiu-me essa ideia... não tinha nada a perder. Será?

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    2. Se quisermos acreditar na 'boa fé' dela acho que sim, senão é um misto de ingenuidade, estupidez e ganância...

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    3. PM: Ingenuidade sem dúvida, E alguma ganância. É um lucro que parece fácil... demasiado fácil.

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.