Chama-se Laura e tem 86 anos. Chamo-a sempre de D. Laura. Velhota, demasiado encarquilhada, corcunda, de pele mirrada, olhos tristes, meios vazios, e muitas rugas na pele amarelecida pelo tempo e no rosto sofrido. Senhora educada, culta, conversadora e assustadoramente lúcida.
Pergunta-me: Que vês tu que me cuidas? Vá, diz lá o que vês...
Não lhe digo a verdade, omito a parte dolorosa e digo-lhe que vejo uma senhora idosa, simpática, bem cheirosa, muito cuidada, arranjada e com uma cara ainda bonita, acrescento que gosto de pessoas e tenho um fascínio por estórias de pessoas. Vidas com gente dentro.
Sorri e diz-me de forma pausada, com uma imensa ternura:
Quem olha para mim e vê uma velha que se baba quando come, que perde os sapatos enquanto anda, que tropeça nos tapetes constantemente e até nos próprios pés, que usa fralda porque não segura a urina, que de vez em quando se descuida e suja a cama, ou que se perde com o olhar vazio a olhar em volta, de facto não me vê. Então abre os olhos, esta não sou eu. Vou dizer-te quem sou eu...
Quem olha para mim e vê uma velha que se baba quando come, que perde os sapatos enquanto anda, que tropeça nos tapetes constantemente e até nos próprios pés, que usa fralda porque não segura a urina, que de vez em quando se descuida e suja a cama, ou que se perde com o olhar vazio a olhar em volta, de facto não me vê. Então abre os olhos, esta não sou eu. Vou dizer-te quem sou eu...
Eu sou a ultima de 8 irmãos, com um pai e uma mãe autoritários mas meigos e dedicados. Somos irmãos e irmãs à bulha mas que gostam uns dos outros. Sou uma rapariga de dezasseis anos com asas nos pés. Cheia de vida e de sonhos. Sonho que um dia vou encontrar o amor. Irreverente, imprudente. Perco a virgindade aos dezassete. Sou malandreca, não sei se percebes? Casada aos vinte anos, o meu coração rejubilando de tanta felicidade. Apaixonada pelo meu homem. Tenho já 25 e um filho.Tenho 27 e outro filho. Tenho 29 e uma filha. Sou agora uma mulher de trinta anos com três filhos, uma casa, uma família, e a vida passa depressa. Quarenta anos e um dos filhos não estará mais aqui. Um acidente levou-mo. A dor é imensa, pensei que não recuperasse a capacidade de sorrir outra vez. Mas tenho um homem do meu lado, capaz de me amar e fazer voltar a sorrir. Ele vela por mim. Cinquenta anos, e de novo brincam bebés perto de mim. Tão bom. Voltam os dias negros. O meu marido morre. Olho para o futuro tremendo de medo. Nunca tive tanto medo. Nunca me senti tão só, tão desamparada. Todos os meus filhos estão agora ocupados a educar os seus. A vida faz o seu curso. E eu penso nos anos, na vida e no amor que conheci... no que a vida me deu e tirou. Já sou velha agora e a natureza é cruel. Demasiado. Neste corpo velho habita o mesmo coração, habita uma vida rica, doce umas vezes, amarga outras tantas, mas uma vida vivida, plena. Lembro-me das alegrias, lembro-me das tristezas, e de novo sinto a vida a passar por mim, e amo a vida e o que me rodeia. Repenso nos anos tão curtos e passados tão depressa. Penso nos sonhos que adiei e não concretizei. Fico triste mas resignada a toda esta realidade implacável e dolorosa em que vivo.
Então abre os olhos...
Então abre os olhos...
Que vês tu agora quando me olhas?
São vidas assim com gente por dentro que me fazem ter um respeito imenso pelos velhinhos. Tenho uma sogra que tem uma maneira de ser levada da breca, mas de quem gosto como se fosse minha mãe que com 90 anos não tem nenhum problema de saúde, não toma um unico medicamento para nada...e eu agradeço a Deus todos os dias. Todas/os vamos um dia ser D. Lauras e vamos precisar que nos vejam quando olham para nós...vivo receosa desses dias porque a sociedade na sua maioria tende a não nos ver quando olha para nós...
ResponderEliminarjinhooooooosssss companheira da minha hora de almoço:)
Suricate: Há gente com tanta vida dentro das suas vidas, tantos segredos, coisas tão belas. Sabes do que tenho sempre consciência? E que um dia vou ser tão D. laura como ela.
EliminarBeijinho Suri.
Uma vida!
ResponderEliminar:)
C. N. Gil: Sim parece que se chama vida ao somatório de sucessos e insucessos, às alegrias e às tristezas que se sucedem ao longo dos nossos anos.
EliminarBeijinho*
Ps- Vi hoje o teu livro. Que falta gigantesca a minha. Obrigada
Estou arrepiada..e de olhos rasos de agua..e nao consigo mais nada dizer..porque o que sinto ca dentro valeu a pena ter aqui passado hoje...!!!
ResponderEliminarTerapia das palavras: Gente com vida dentro. Um pouco o retrarto de todos nós com as nossas histórias de vida.
EliminarO problema da vida é mesmo esse, ser sempre incompleta, quase sem possibilidades de segundas chances, uma linha recta com principio e fim, sendo que aquilo que está no meio é a única coisa que conseguimos alterar em parte, mas ainda assim nunca conseguimos tudo e com isso temos de viver.
ResponderEliminarL' Enfant Terrible: Disseste bem... a vida com a total impossibilidade de segundas escolhas! Acho que a vida se escreve a tinta e uma vez escrita é impossível de apagar, podes rasurá-la, mas nunca será clara e legível.
EliminarE o destino escreve tanto por ti!
Magistralmente escrito!
ResponderEliminarAnónimo: Um anónimo capaz de dar um elogio é coisa rara nesta blogocoisa.
EliminarNão está magistral, mas foi sentido por mim...
Obrigada:))
ACzinha, o texto é muito claro, relata uma vida aparentemente normal, num tempo que é muito diferente do nosso sobretudo na perspetiva do amor :)
ResponderEliminarNess: No tempo em que as coisas se consertavam. Parece que hoje só se deitam fora.
EliminarE contra mim falo, que sou da geração que é mais fácil comprar novo que esperar pela peça e substituir...
o mesmo coração... muito bom, gostei, pra lá de tanto.
ResponderEliminarManel Mau-Tempo: O coração mantém-se o mesmo...envelhece o corpo mas procura-se na mesma o carinho e o calor.
EliminarSerá que a consciência envelhece? Essa é a parte assustadora... Ter 80 anos e "pensar" que se tem 30.
ResponderEliminarSon da Mamã: A consciência envelhece... Há medida que vamos envelhecendo vamos adoptando outros comportamentos e fazendo novas escolhas.
EliminarUm belo texto... Às vezes esqueço-me que a vida passa a correr :(
ResponderEliminarRicardo: Se passa a correr! Já viste a rapidez com que passaste a infância? E a juventude?
EliminarComovi-me imenso com este texto. Comparo a minha vida vazia com a vida cheia da D. Laura e fico assustada. Enfim...
ResponderEliminaranita: Não há vidas vazias... a tua vida é cheia dos teus locais, dos teus momentos e das tuas pessoas. Enche-a de tudo o que te deixa feliz e nunca te esqueças de ver sempre o copo meio cheio...
EliminarVazia de pessoas. De família, principalmente.
EliminarAnita: Arranja novas pessoas, os amigos podem substituir a família (às vezes) e partilharem tempo de qualidade contigo.
EliminarDigo o mesmo que o anónimo lá de cima: muito bem escrito.
ResponderEliminarRicardo António Alves: Muito obrigada pela simpatia:))
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