Chama-se Catarina. É pequenita em tamanho, gigante nas atitudes. Vou recebê-la ao transfer. Vem numa maca, vestida apenas com uma bata hospitalar cor de rosa e uma touca igualmente cor de rosa na cabeça. Meto-me com ela. Ai que gira Catarina, vens toda a condizer. És tão bonita. Sorri-me num sorriso gigante que começa na boca e acaba nos olhos. Doce. Resisto para não lhe pegar ao colo.
Os maqueiros aproximam-se da maca para efectuarem o transporte até à porta da sala do Bloco Operatório. Olha para mim e diz-me: Posso ir a pé? Gostava de ir a pé, consigo andar... ainda consigo andar. O "ainda" diz-me muito, mas ignoro metade da frase e respondo-lhe que sim, que pode ir a pé. Senta-se de imediato na maca e quase num salto quer descer. Espera Catarina, vou pedir uns overshoes para os teus pézinhos, não vais por aí descalça miúda. Ela espera sentada, de olhar atento ao que a rodeia. Vejo os minutos passarem e vejo-lhe os olhitos muito abertos a absorverem tudo o que se passa, gente de fato de circulação verde, socas de todas as cores e modelos, soquetes coloridas, corredores compridos e frios quase gélidos mantidos a uma temperatura adequada pelo ares condicionados que trepidam ruidosamente nas condutas por cima das nossas cabeças.
Caminha agora ao meu lado. Devagar. Estendo o meu braço e dou-lhe a mão; Não precisas dar-me a mão, não sou nenhuma bebé. Claro que não Catarina, que disparate o meu, foi só um miminho se me deixares, claro. Devolve-me a mão. Entramos na sala B do Bloco Operatório assim, eu grande, ela pequenina, as duas de mão dada. Sinto-a estremecer. Tens frio Catarina? Tenho sim, mas tem que ser. O tem que ser revolveu-me as entranhas. Demasiado consciente de tudo, demasiado adulta para os seus 7 anos de idade. Fez-me calafrios a mim também e não de frio. Ajudo-a a deitar na marquesa operatória. A mesa cirúrgica está semi posta com algum do material instrumental, o meu colega que vai instrumentar a cirurgia desinfectado e pronto para a chegada dos cirurgiões ortopedistas que foram "lavar-se", a médica anestesista com o trolley de entubação e a mesa com o material anestésico ao lado para iniciar todos os procedimentos.
O computador está sintonizado numa radio on line e toca baixinho os primeiros acordes de New York da Alicia keys, ouve-se Uúúúúú New York, I grew up in a town that is famous as a place for movie scenes...Ouve-se uma vozinha sumida ao longe. Posso dançar? Só esta musica, posso?
Olhamos todos uns para os outros, depois todos, mas todos em simultâneo para a Dra. Fátima - a última palavra pertence à anestesista responsável pela sala. Não foi preciso esperar. Claro que sim Catarina, vamos lá dançar que esta música faz toda a gente dançar. Ninguém fica quieto, todos nós dançamos, desde o auxiliar de acção médica aos 4 enfermeiros presentes e até aos cirurgiões. Abanamos as ancas, sacudimos os braços e as pernas e agitamos o corpo em sintonia com a Catarina pequenina, ainda menina, a dar voltas e voltas no chão de vinil envolta numa bata de bloco meia aberta.
A música acabou. A Catarina foi picada, anestesiada sem um choro ou um único ai. Nunca lhe vi os olhos brilhantes ou sequer uma lágrima. Pedi-lhe que sonhasse com coisas boas, gomas de ursinhos e as férias que passou com os pais e o mano mais pequeno no Algarve e na Isla Mágica. Sofre de osteossarcoma osteoblástico de grau III, não apresenta quaisquer metástases e as hipóteses de sobrevida são muito boas por não apresentar lesões secundárias. Mas vai perder uma perna e isso nunca mais ninguém, nem nada na vida lhe poderá devolver.
Mas com a força dela, acredito que vai voltar a dançar.
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Ana, parece-me que é relativamente comum que os doentes queiram ir a pé para o bloco, caso se sintam em condições.
ResponderEliminarFez-me muita confusão que a penúltima vez que fui operada, com anestesiada geral, não permitissem que fosse do quarto para o bloco a pé. Ainda não tinha levado a dose... mas compreendo, claro.
Também tive música, tal como da última vez. E sei que faz muita diferença, sim.
Essa menina vai vencer, apesar das sequelas.
Beijo
(Gosto muito de te ler e faço-o sempre!)
Isabel Pires: Não podem ir a pé, é uma regra. Por uma questão de segurança do próprio doente. Por boas razões vale bem a pena quebrar regras.
EliminarBeijinho
Uma lição de vida e coragem para muitos adultos que se queixam do nada. Fiquei com a lágrima no canto do olho. As rapidas melhoras para a pequena guerreira Catarina. Ela é um anjinho muito especial. Envio 2 beijinhos, um para ela e outro para ti
ResponderEliminarOutra Maria: Vai ser um processo de recuperação muito longo e com direito a muitas mazelas emocionais. Talvez o tempo faça o que se espera dele.
EliminarBeijinho Maria
Foda-se AC...
ResponderEliminarVenho aqui sempre em silêncio, mas tem momentos que simplesmente me deixas completamente emocionado.
Beiju
Profanu: Tenho tantas mas tantas histórias destas. Não conto nem metade, senão o meu blog seria apenas um somatório de acidentes de percurso e tristezas vividas e quero que muito mais que isso - uma boa parte de mim.
EliminarBeijinho
ufa.
ResponderEliminarfiquei entupida.
Laura Ferreira: Fico tantas vezes assim entupida... o que vale é a minha capacidade brutal de me alhear do trabalho assim que saio dali para fora. Não trago trabalho para casa... e isso é bom.
EliminarDesejo o melhor para a Catarina, que toda essa garra, essa força de vontade seja recompensada, nem que seja por um pequeno milagre.
ResponderEliminarBeijinhos
Chic'Ana: Garra ela tem, ajuda da família também, agora grande parte do esforço vai ter que ser dela. Acredito que vá lutar, é uma guerreira.
EliminarBeijinhos
Bem vinda por aqui:))
obrigada por este texto.
ResponderEliminarana: Retalhos de dias no trabalho.
EliminarFoi o primeiro texto que por aqui li. Recordo que fiquei com um valente nó na garganta mas encantada como a escrita. Desde então, fiquei.
ResponderEliminarCristina Santos: Este texto já era tão velhinho, fui buscá-lo ao baú das recordações. Lembro-me como se fosse hoje todas estas cenas.
EliminarGosto de (te) ler porque, algumas vezes, como agora, os teus posts são como que uma chapada de realidade. De realidade que sabemos que existe, mas da qual nem sempre nos lembramos. Da realidade que me faz lembrar que somos tão insignificantes e que os problemas do dia-a-dia são só pequenas coisas num oceano.
ResponderEliminaragri:Tão pequeninos a maioria dos nossos problemas...
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