Doente entrada na sala de emergência imobilizada em plano duro, vitima de despiste seguido de capotamento, desencarcerada no local por uma equipa de resgate dos bombeiros e trazida pelo Inem. À entrada, orientada, consciente, parâmetros vitais estáveis, valores tensionais mantidos e score 15. Apresentava tala imobilizadora no membro inferior direito por possível fractura da diáfise do fémur, colar cervical para estabilização apenas, mas sem sinais de lesão, e escoriações várias na face e crânio com provável fractura dos ossos próprios do nariz e perda de peças dentárias visíveis.
Tem 34 anos e chama-se Ana Isabel. Gosto de Anas e uma Ana nunca vem só, vou dizendo. E acrescento, há todo o tipo de Anas, Ana Margarida, Ana Cristina, e até Ana Isabel. Brinco com ela, com o nome dela e apresento-me, sou a enfermeira ac e vamos cuidar de ti. Ela deixa escapar um sorriso tímido com a coincidência. Vou canalizando uma veia, tirando sangue para análise e despistagem de substâncias proibidas (que agora em caso de acidente são obrigatórias) controlando valores de oxímetria e tensão arterial no monitor e vamos conversando. Bipa-se a Ortopedia e contacta-se com urgência a Radiologia.
Então Ana como te aconteceu isto...
Começa a falar e a soluçar compulsivamente. Entre palavras que não entendo, metade ditas, metade sussurradas, muito a custo, consigo finalmente perceber o que se passou. Iam a discutir, ela e o marido, numa discussão banal, sem sentido. Quase daquelas macacoso-piolhoso. Infantil e sem interesse como parece que começam todas as discussões. Por nada. A atravessar a ponte Vasco da Gama no sentido para Lisboa e quase a chegarem ao trabalho. Ela vinha a conduzir, ele disse-lhe - vai mais devagar, vais muito depressa, ela disse-lhe - mas só vou a 90, ele disse - mas se eu te digo para ires mais devagar é para ires mais devagar, ela disse - mas quem vai a conduzir sou eu por isso vou à velocidade que quero, ele disse - não vais não, eu vou aqui e se eu digo para ires mais devagar tu vais mais devagar... e foram nisto vários quilómetros até que ela o desafiou e pondo o pé no acelerador esticou a corda um pouco mais... Ele danado com a provocação não vai de modas, num gesto irreflectido puxou o travão de mão, o carro ia a 120 à hora, entrou em derrapagem, deu uma pirueta, ela perdeu de imediato o controlo da direcção, bateu no separador central e a partir daí iniciou um processo de voltas e cambalhotas em que acabaram os dois dentro do carro, presos com o cinto de segurança, de cabeça para baixo e enfiados no meio de uma nuvem de pó dos airbags, de vidros partidos, plásticos do interior e ferros retorcidos. A ultima coisa que ainda o ouviu dizer foi - ai é assim, então foda-se quem conduz sou eu.
Disse-lhe Ana, isso é muito grave, que vais fazer em relação ao que se passou?
Respondeu-me nada. Ele já tem a conta dele (fracturou as duas pernas e fez uma luxação de um ombro), e eu não vou fazer mais nada. Vamos-nos sentar a falar os dois. Isto é só nosso, por favor não conte nada. Claro que não Ana, brinco com a situação e justifico dizendo que enfermeiras são como os padres, estão sujeitas ao sigilo da confissão.
Para a companhia de seguros foi mais uma participação de sinistro.
Para a policia um despiste possivelmente por excesso de velocidade.
Para os números das estatísticas, mais um acidente.
Para a Ana um segredo em forma de pesadelo que vai deixar marcas para sempre. Suponho até que irreparáveis.
Para mim que sei a verdade de tudo o que se passou fica uma raiva imensa por quem é capaz de colocar vidas em risco, a sua e as dos outros para não perder a filha da puta de uma discussão a feijões e sobre nada que valha a pena. O amor às vezes é lindo.