quarta-feira, 23 de março de 2016

Murros no estômago com apenas palavras...



"Esta será a nossa vida. Todos os dias, conforme o ritmo estabelecido, sair e voltar, trabalhar, dormir e comer, adoecer, curar-se ou morrer.
... Até quando? Mas os velhos riem-se desta pergunta; por esta pergunta reconhecem-se os recém chegados. Riem-se e não respondem; para eles, desde há meses, desde há anos, o problema do futuro longínquo esmoreceu, perdeu qualquer intensidade, diante dos problemas bem mais pungentes e concretos do futuro próximo: quanto haverá para comer hoje, se irá nevar, se haverá carvão para descarregar. Se fôssemos capazes de raciocinar, deveríamos resignar-nos a esta evidência, de que o nosso destino é perfeitamente impossível de conhecer, de que qualquer conjectura é arbitrária e perfeitamente carente de qualquer fundamento real. Mas os homens só muito raramente são capazes de raciocinar, quando o que está em jogo é o seu próprio destino, preferem em todos os casos as posições extremas; por isso, conforme os seus caracteres, entre nós uns convenceram-se imediatamente de que tudo está perdido, que aqui não é possível viver e que o fim é inevitável e próximo; outros convenceram-se de que, apesar da extrema dureza da vida que nos espera, a salvação é provável e não está longe e, se tivermos fé e força, voltaremos a ver as nossas casas e as pessoas amadas. As duas classes, dos pessimistas e dos optimistas, não são porém distintas: não porque os agnósticos sejam muitos, mas porque a maioria, sem memória nem coerência, oscila entre as duas posições limites, conforme o interlocutor e o momento.

Toquei o fundo. A apagar o passado e o futuro aprende-se muito rapidamente, se a necessidade empurra. Passados quinze dias da chegada, já sofro da fome regulamentar, a fome crónica desconhecida dos homens livres, que provoca sonhos de noite e se espalha em todos os membros dos nossos corpos; já aprendi a não me deixar roubar, pelo contrário se encontro algures uma colher, um cordel, um botão que possa apanhar sem perigo de punição, ponho-os no bolso e passo a considerá-los meus de pleno direito. Já apareceram, na sola dos meus pés, as chagas que não saram. Empurro vagões, trabalho com a pá, canso-me à chuva, tremo ao vento; até o meu próprio corpo já não me pertence: tenho o ventre inchado e os membros emagrecidos, o rosto inchado de manhã e encovado à noite; alguns entre nós têm a pele amarela, outros cinzenta; quando ficamos sem nos ver por três ou quatro dias, temos dificuldade em reconhecer-nos."

Se Isto É Um Homem - Primo Levi.

E não são precisas mais palavras. 

8 comentários:

  1. a dureza da crueldade humana.
    Como podemos nós queixarmo-nos seja lá do que for.

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    1. zanguelamangue: Queixamo-nos quase sempre de barriga cheia. Hoje queixamo-nos porque está frio amanhã porque chove, depois porque afinal está calor...

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  2. Choro eu das minhas nódoas negras sentimentais...

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    1. zanguelamangue: As nossas dores são sempre as maiores....

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  3. Não mesmo...

    Bjão
    Casaert

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    1. Casaert: Ler este livro é perceber que para desconstruir um Homem e os seus valores é preciso muito pouco, basta retirar-lhe o mais básico da sobrevivência... e no fim levar-lhe a capacidade de sonhar... e então obtém-se um Homem vivo já morto.

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  4. De facto, nós gajos, somos uns bípedes muito estranhos...

    Beijinhossss

    :))

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    1. Jorgr: A humanidade que somos todos é capaz do impensável...

      BJ*

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.