terça-feira, 14 de abril de 2015

Sem ninguém ver...




São duas da manhã e faz frio. Mesmo assim decido ir ao pátio apanhar ar. Muitas horas de hospital e cheiro a doença entopem-me as narinas. Cheira a suor e a corpos misturado com desinfectantes. Falta-me o ar e sufoco. Sento-me num degrau de pedra da entrada, agarro os joelhos e deixo-me ficar assim sozinha, um bocadinho aninhada em mim, meia sonolenta no escuro a ouvir o absoluto silêncio que me traz a noite ser interrompido pelo ruído muito ao longe de vozes na minha Unidade que não identifico.

Levanto a cabeça. Assusto-me. No escuro vejo um vulto a andar de um lado para o outro. Com os olhos habituados à escuridão reconheço o Artur, tem 46 anos e é meu doente. Meu é uma palavra que utilizamos na gíria profissional mas que não quer dizer grande coisa. É doente dele mesmo e do hospital, faz entradas por saídas, vai e vem com o frio do Inverno, com os pólens da Primavera, com o calor abrasador do Verão e as chuvas do Outono. Tem uma doença grave e sempre que algo se altera no seu frágil estado precisa dar entrada na urgência e de cuidados médicos imediatos, oxigénio, alimentação parentérica (porque mal se consegue alimentar), reposição de níveis hídricos e mais e mais. 

Tem um tumor da faringe e já lhe foi retirado quase metade da oro faringe, inclui isto parte da boca, língua, maxilar inferior e ramo ascendente da mandíbula à esquerda. Tem uma dificuldade respiratória extrema e num dos últimos internamentos foi preciso fazer-lhe uma traqueostomia de urgência para que conseguisse respirar. Olho a imagem dele no escuro e comparo-a com a imagem do homem que sei que já foi. Agora quase esquelético, pele acinzentada e macilenta, meio curvado, a face sofrida praticamente destruída e irreconhecível pelas cirurgias que lhe levaram a cara mas deixaram o tumor. Observo à distancia como fuma um cigarro às escondidas, segura o cigarro nos dedos magros e a tremer, coloca-o na metade da boca que lhe resta, e sofregamente suga-o como se sugasse prazer e vida. Saboreia-o. Pelo orifício da traqueostomia numa visão aterradora sai uma baforada de fumo que se levanta no ar. Levanto-me num salto para lhe ir ralhar, já levo as palavras na boca e penso em voz alta - que profundo disparate alguém com um tumor da laringe estar a fumar. Mas depois calo as palavras, guardo-as na caixinha das moralidades bacocas e sem sentido, sento-me outra vez e não lhe nego o prazer enorme daquele cigarro fumado às escondidas. Sem ninguém ver.

É que ele não sabe o que eu sei. 
E tempo para ver as estrelas, apanhar frio e fumar, é coisa que ele já não tem.

16 comentários:

  1. E assim deixaste me com um nó na garganta...

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    1. Imprópria: E eu... tantos nós que me ficam na garganta em tantos dias.

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  2. Olá, AC
    Estes paradoxos da vida (?) em que se luta por uma causa perdida já no início.
    Até que ponto somos coerentes?
    Até que ponto é válido prolongar um sobreviver do sofrimento?

    abç

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    1. Carmen: Não concordo em prolongar a vida com prolongar o sofrimento. Vida é qualidade de vida. Ponto!

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  3. Já lhe levaram tanta coisa ao menos que o deixem ter um pequeno e secreto prazer, mesmo que esse prazer o venha a fazer piorar...

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    1. PM: Pensei em desatar a gritar a ralhar-lhe mas depois achei que privá-lo do prazer de um cigarro no caso da doença dele não ia fazer diferença rigorosamente nenhuma e para ele aquele momento podia fazer muita diferença.

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  4. É.... muito difícil acompanhar os últimos instantes..... pessoas são frágeis, cuidadas por pessoas sadias, mais frágeis ainda...
    Te entendo AC....
    Boa noite!!!

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    1. Pequenos Delitos: Somos muito mais frágeis do que imaginamos, e sabes uma coisa raramente tomamos consciência do quanto somos mortais.

      Beijinho*

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  5. Às vezes deve dar vontade de parar. Ouvir apenas a chuva e deixar-se ir na maré.
    O Artur de certeza que já ouve a maré....

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    1. Son da Mamã: Podes crer...Tenho alturas que preciso de me isolar uns minutos e alhear-me do que vejo à minha volta, doença, vómito, sangue, sofrimento, causas perdidas...adiante. que este blog é sobre sonhos e sexo.

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  6. Os últimos prazeres da vida...e tão curta que ela é...

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    1. Jovem Sonhadora: Muito mais do que pensamos... às vezes o amanhã já é tarde.

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  7. Vim aqui ter pela mão da BC e ainda bem.
    Na minha opinião, na qualidade de leitora de uma realidade tão dura de ver, penso que o teu gesto foi muito generoso.
    Felicidades e são pessoas como tu que fazem a diferença na classe médica.
    Deixo um abraço.

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    1. Sandra Louçano: Sejas muito bem vinda aqui ao estaminé. Nem sempre por aqui as estórias são tristes.

      * não sou médica, sou enfermeira

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.