São duas da manhã e faz frio. Mesmo assim decido ir ao pátio apanhar ar. Muitas horas de hospital e cheiro a doença entopem-me as narinas. Cheira a suor e a corpos misturado com desinfectantes. Falta-me o ar e sufoco. Sento-me num degrau de pedra da entrada, agarro os joelhos e deixo-me ficar assim sozinha, um bocadinho aninhada em mim, meia sonolenta no escuro a ouvir o absoluto silêncio que me traz a noite ser interrompido pelo ruído muito ao longe de vozes na minha Unidade que não identifico.
Levanto a cabeça. Assusto-me. No escuro vejo um vulto a andar de um lado para o outro. Com os olhos habituados à escuridão reconheço o Artur, tem 46 anos e é meu doente. Meu é uma palavra que utilizamos na gíria profissional mas que não quer dizer grande coisa. É doente dele mesmo e do hospital, faz entradas por saídas, vai e vem com o frio do Inverno, com os pólens da Primavera, com o calor abrasador do Verão e as chuvas do Outono. Tem uma doença grave e sempre que algo se altera no seu frágil estado precisa dar entrada na urgência e de cuidados médicos imediatos, oxigénio, alimentação parentérica (porque mal se consegue alimentar), reposição de níveis hídricos e mais e mais.
Tem um tumor da faringe e já lhe foi retirado quase metade da oro faringe, inclui isto parte da boca, língua, maxilar inferior e ramo ascendente da mandíbula à esquerda. Tem uma dificuldade respiratória extrema e num dos últimos internamentos foi preciso fazer-lhe uma traqueostomia de urgência para que conseguisse respirar. Olho a imagem dele no escuro e comparo-a com a imagem do homem que sei que já foi. Agora quase esquelético, pele acinzentada e macilenta, meio curvado, a face sofrida praticamente destruída e irreconhecível pelas cirurgias que lhe levaram a cara mas deixaram o tumor. Observo à distancia como fuma um cigarro às escondidas, segura o cigarro nos dedos magros e a tremer, coloca-o na metade da boca que lhe resta, e sofregamente suga-o como se sugasse prazer e vida. Saboreia-o. Pelo orifício da traqueostomia numa visão aterradora sai uma baforada de fumo que se levanta no ar. Levanto-me num salto para lhe ir ralhar, já levo as palavras na boca e penso em voz alta - que profundo disparate alguém com um tumor da laringe estar a fumar. Mas depois calo as palavras, guardo-as na caixinha das moralidades bacocas e sem sentido, sento-me outra vez e não lhe nego o prazer enorme daquele cigarro fumado às escondidas. Sem ninguém ver.
É que ele não sabe o que eu sei.
E tempo para ver as estrelas, apanhar frio e fumar, é coisa que ele já não tem.
E assim deixaste me com um nó na garganta...
ResponderEliminarImprópria: E eu... tantos nós que me ficam na garganta em tantos dias.
EliminarOlá, AC
ResponderEliminarEstes paradoxos da vida (?) em que se luta por uma causa perdida já no início.
Até que ponto somos coerentes?
Até que ponto é válido prolongar um sobreviver do sofrimento?
abç
Carmen: Não concordo em prolongar a vida com prolongar o sofrimento. Vida é qualidade de vida. Ponto!
EliminarJá lhe levaram tanta coisa ao menos que o deixem ter um pequeno e secreto prazer, mesmo que esse prazer o venha a fazer piorar...
ResponderEliminarPM: Pensei em desatar a gritar a ralhar-lhe mas depois achei que privá-lo do prazer de um cigarro no caso da doença dele não ia fazer diferença rigorosamente nenhuma e para ele aquele momento podia fazer muita diferença.
EliminarÉ.... muito difícil acompanhar os últimos instantes..... pessoas são frágeis, cuidadas por pessoas sadias, mais frágeis ainda...
ResponderEliminarTe entendo AC....
Boa noite!!!
Pequenos Delitos: Somos muito mais frágeis do que imaginamos, e sabes uma coisa raramente tomamos consciência do quanto somos mortais.
EliminarBeijinho*
Às vezes deve dar vontade de parar. Ouvir apenas a chuva e deixar-se ir na maré.
ResponderEliminarO Artur de certeza que já ouve a maré....
Son da Mamã: Podes crer...Tenho alturas que preciso de me isolar uns minutos e alhear-me do que vejo à minha volta, doença, vómito, sangue, sofrimento, causas perdidas...adiante. que este blog é sobre sonhos e sexo.
EliminarOs últimos prazeres da vida...e tão curta que ela é...
ResponderEliminarJovem Sonhadora: Muito mais do que pensamos... às vezes o amanhã já é tarde.
EliminarVim aqui ter pela mão da BC e ainda bem.
ResponderEliminarNa minha opinião, na qualidade de leitora de uma realidade tão dura de ver, penso que o teu gesto foi muito generoso.
Felicidades e são pessoas como tu que fazem a diferença na classe médica.
Deixo um abraço.
Sandra Louçano: Sejas muito bem vinda aqui ao estaminé. Nem sempre por aqui as estórias são tristes.
Eliminar* não sou médica, sou enfermeira
Gosto.
ResponderEliminarzanguelamangue: :))
Eliminar