sábado, 16 de abril de 2016

Dormir sem pressas...




A Maria dormita no cadeirão, meia adormecida, de cabeça apoiada na mão. Tem os olhos fechados mas consegue-se perceber que estão inchados, cheios de papos, por baixo vejo o contorno das olheiras fundas, arroxeadas, quase negras.Tem os lábios meios entreabertos, e neles o desenho de um sorriso triste. Apercebo-me que mesmo a dormir, sofre. E eu sofro com ela. Apresento-vos a rapariga mais teimosa que já conheci. Tem 34 anos, e já há vários dias que dorme sentada num quadrado de napa preta, remendado com adesivo hospitalar, duro, meio esquisito, que uns chamam de sofá, outros de cadeirão ou mesmo de poltrona, mas que a mim me parece só uma cadeira um pouco mais larga, igualmente desconfortável e que toda a gente teima em dar um nome pomposo. Espera por nada, espera por tudo, espera por um milagre, mas não desiste. Numa teimosia doce de quem ama.

O marido da Maria é professor, colocado a 150 quilómetros, sortudo diz a maioria das pessoas, teve trabalho, foi colocado o que é uma sorte e mesmo assim não ficou muito longe de casa. Vai e vem para Lisboa todos os dias, numa rotina pesada, dolorosa, de quem sai de casa em madrugadas escuras e regressa ao fim do dia cansado mas a tempo de cuidar dos filhos, jantar, ajudar nas tarefas domesticas, corrigir testes, e ainda amar a mulher à pressa. Era sexta-feira, já se sentia o cheirinho agradável do fim de semana, queria chegar mais cedo, saiu ao inicio da tarde rumo a Lisboa, a chuva terrível, o piso perigoso, a falta de visibilidade e o cansaço acumulado, juntos com a continua e interminável extensão de alcatrão da auto estrada chamaram o sono, e os olhos fecharam-se-lhe por um minuto. Só um minuto mesmo. De fugida. E o marido da Maria adormeceu. Despistou-se, sofreu um traumatismo craniano grave, e está em coma.

Agora dorme descansado, profundamente, sem pressas, num sono do qual já não acredito que acorde.

20 comentários:

  1. São coisas que custam tanto e coisas de que ninguém está livre. Espero que o milagre aconteça e que o rapaz acorde. Essa vida de nómada diz-me muito, fala-me bem cá dentro...

    Beijos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. PM: Não acorda nunca mais. Já foi desligado.
      End of history.

      Eliminar
    2. Oh... nem sei que diga, mais uma família enlutada :(

      Eliminar
    3. PM: E fica a enorme impotência sobre a tremenda injustiça. É isso que eu sinto.

      Eliminar
  2. Eu juro que estes teus posts sobre os "teus" pacientes são sempre os meus preferidos, são sempre os que gosto mais de ler... Mas bolas!!! Também são sempre os que mais me "abananam" :(

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Lia: São quase sempre histórias tristes, evito-as um pouco porque senão este blog era um choradinho do catano. De vez em quando lá vou ao baú buscar uma...

      Eliminar
  3. Vida cruel essa que para fazer algo que gostamos nos destrói a vida e corroí quem amamos!

    Beijo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Utena: Verdade... queremos comprar coisas para vivermos, e as coisas sugam-nos a vida.É duro... e injusto.

      Beijooooo*

      Eliminar
  4. Respostas
    1. Sofia: A vida é de modo geral do mais duro que há...

      Eliminar
    2. eu sei AC... mas não deixa de custar que alguém que apenas queria ser feliz (profissional e pessoalmente) tenha de fazer esse tipo de sacrifício que acaba por lhe ceifar a vida sem dó nem piedade.

      Eliminar
    3. Sofia: Lidamos mal com a injustiça. Fica a pergunta para sempre - Porquê?

      Eliminar
    4. é precisamente isso!
      fica a pergunta "porquê?" por responder....

      Eliminar
    5. Sofia: Nunca consegui encontrar respostas lógicas para os meus porquês. A lógica é uma batata- dizem!

      Eliminar
    6. não há lógica que possa responder a essa pergunta...

      Eliminar
    7. Sofia: Quem tem fé (que não é o meu caso) encontra resposta para todas as minhas perguntas.

      Eliminar
    8. mas as respostas que encontra não são (na sua maioria) providas de lógica...

      há momentos em que a única coisa a que uma pessoa que passa por uma situação dessas se pode agarrar é a fé... de forma a manter o mínimo de sanidade mental e conseguir levar a vida para a frente.

      eu tb sou mulher de lógica e não de fé... mas não sei qual seria a minha reação numa situação do género.

      Eliminar
    9. Sofia: Concordo contigo. Quando se perda a esperança resta-nos apenas o conforto da fé. Também não sei como iria reagir...

      Eliminar
  5. Vida ingrata, vida macaca, hoje estou zangada com a puta da vida ( e só me apetrece dizer palavrões!!!desculpa!)...uma das minhas poucas AMIGAS...daquelas que me ocupa metade do peito...está doente...ia fazer biópsia, mas o médico ligou este fim de semana a dizer que afinal é melhor avançar já para cirurgia...e eu...eu queria tanto puder trocar com ela, oh pá a sério...estou mesmo zangada...porque é que esta merda só acontece a quem não merece?!?!??!!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Suricate: Merda....Tens um papel a fazer que tens que cumprir na integra, a tua missão é dares força, incutires esperança e fazê-la acreditar por cada segundo que ela vai dar a volta a isso, que daqui a uns meses vai tudo ser apenas um pedaço de vida menos bom, mas que no fim há uma vida longa cheia de coisas boas para viver. É isso que vais fazer. E nada de lágrimas ao pé dela. Não te agaches ao lado dela, levanta-a com a tua força à tua altura.

      Força para a tua amiga. Que tudo corra bem. Sê a amiga que ela precisa do lado dela.

      Beijo Suri

      Eliminar

Diz aí nada ou coisa nenhuma.