sábado, 26 de dezembro de 2015

Histórias de um Natal. O meu, passado a trabalhar...







Trabalhei no Natal. Tarde e noite de urgência. Foi uma noite calma sem grandes complicações tirando um grande queimado, uma senhora idosa que acendeu o "braseiro"- (Bacia de metal com carvão incandescente)junto a uma cadeira onde estava sentada, com o calor e a sonolência própria da idade avançada aliada à sensação de bem estar e conforto acabou por adormecer e cair para cima do braseiro e sofrer queimaduras de 3º grau na face, mãos, tronco. Recebêmo-la e depois foi acompanhada e encaminhada para a Unidade de Queimados. Mas não é disto que quero falar.


O segundo doente que recebi foi um grande Politraumatizado helitransportado de um Hospital da periferia da grande Lisboa com lesões várias, entre elas secção total de medula com perda de sensibilidade motora e ausência de resposta a estímulos, para ser estudado e observado pela especialidade de Vertebro-Medular em falta no tal hospital. Chama-se Eduardo. Tem 39 anos, divorciado, pai de um filho de 7. Consciente, orientado no espaço e no tempo, sem amnésia para o sucedido, com ausência de traumatismo craniano. Enquanto espera pela especialidade fico na Unidade de Trauma com ele e encetamos uma conversa. Tenho todo o tempo do mundo. Temos os dois. Eu não vou a lado nenhum e ele também não. Começamos a conversar como dois velhos amigos, daqueles de longa data cheios de peripécias e aventuras para contar.

Ele começa...


Estava de folga e toda a gente sabe que as folgas são para aproveitar. Rio-me e respondo um rápido - então não sei! Resolvi pegar no Parapente e rumar junto a Sesimbra às arribas da Serra da Arrábida. Faço-o porque gosto da liberdade das alturas, do prazer de voar, do silêncio dos céus, do contacto com a natureza e da adrenalina do perigo. Há muitos anos que o faço - desde os 23 conta. Fala-me da sua vida e eu oiço-o enternecida. Reconheço-me em determinadas escolhas, reconheço-me na vontade de viver e na quantidade de sonhos por realizar. Depois fala-me no acidente que sofreu. O vento mudou, fala-me numa aproximação de uma frente de ar, na mudança da pressão atmosférica, na sua incapacidade para corrigir o trajecto e na percepção imediata que teve que ia cair. E a sua vida a passar como num filme, e o arrependimento, e o chão ali já tão perto, e uma estrada já ali e umas árvores que lhe pareceram uma boa opção para reduzir o impacto e evitar a morte. Gosto muito de viver sabes?

Ia começar a falar mas calo-me. Oiço só. Não lhe posso dizer nada do que sei. Sei que nunca mais vai voltar a andar, sei que está tetraplégico (paraplegia dos 4 membros) sei que vai ficar limitado e dependente até ao fim dos seus dias e que provavelmente nunca mais voltará a voar. Mas porra como é que na véspera de Natal se atira de chofre a alguém um presente tão doloroso e brutal? Hoje é Natal. Adio. Faço o que sei melhor. Minto com vozinha suave, a mentira mais doce que encontrei  - a da esperança. Sabes o que te digo, acredito mesmo que vais ficar bom. E junto-lhe o meu melhor sorriso.

18 comentários:

  1. AC, o teu gesto foi bonito. Acredito que o Eduardo tivesse ciente da sua condição física, mas como ele diz é muito bem, gosta muito de viver.
    Gostei muito do teu testemunho. A vida real por vezes é tão terrível.
    Fica um enorme Beijinho, e como te disse, mantém sempre esse sorriso e esse para de mãos abertas à esperança. São pessoas como tu que fazem a vida ser mais doce.

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    1. Sandra Louçano: A esperança é a ultima coisa que se retira a alguém. A vida é sobretudo injusta, tanta gente que diariamente nos chega porque se quer mesmo matar e falha, sobrevive, e quem adora viver tem que passar por isto.

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  2. Fodass.
    Antes assim, uma mentirinha que deixou passar este natal com esperança. Não invejo isso que fazes. Admiro apenas. Muito.
    Beijão
    Pukas

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    1. Pukas: Sou das poucas que luto com todas as forças que consigo contra a vontade extrema de se dizer verdades absolutas, redondas, cruéis...

      É duro saber que estamos a dizer mentiras, e meias verdades, mas a outra alternativa é quanto a mim pior. Eu quando chegar a minha vez, quero esperança, perder a esperança significa desistir.

      Beijoooo daqui até aí.
      Estou a fazer planos para conseguir ir... ainda estou nos planos. Mas um café é certo.

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  3. É bom que nos dês a conhecer esse lado. A vida também se faz assim.
    Talvez não tenhas mentido. O ficar bem é sempre permeado pelas nossas circunstâncias. Naquele caso, de forma avassaladoramente difícil, é reaprender como se faz quase tudo.
    Beijos

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    1. Isabel Pires: Discutia isso mesmo ontem com um amigo. Dizia-me ele que é sempre preferível uma verdade dura a uma mentira piedosa. Eu não concordo acho que há mentiras que por serem tão doces e bem intencionadas deixam de ser mentiras.

      Beijinho*

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    1. sory.s: Foi uma merda de presente de natal. Resolvi nunca mais reclamar de peúgas e panos da loiça e pegas.

      :))

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  5. Ó AC
    sabendo por experiência própria que escrever bem leva o seu tempo e exige boa mestria cá estou outra vez a felicitar-te pela excelente História de Natal que roubaste ao menino Jesus que te calhou na noite de Natal.
    Mereces um abraço
    beijos do
    Joaquim

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    1. Joaquim: Senti a falta do abraço do menino jesus na minha noite de natal.

      Obrigada
      Beijo

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    1. Petra: Adiei a verdade... foi só isso que fiz. Deixei-lhe manter a esperança mais umas horas, uns dias. Ele depressa vai perceber a verdade, nunca se pode subestimar o conhecimento e inteligência de um doente.

      Beijinhoooo Petra.
      Bom Ano.

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.