Contact - Imagens do fotografo italiano Gabriele Basilico |
Sei todos os ângulos de ir, mas vivo no lugar de quem fica.
Tati Bernardi
São onze da noite. Fecho a porta do carro com o joelho e arrasto-me pela rua fora, de socas, ainda fardada e com a mala ao ombro, a garrafa de água entalada entre o braço e o corpo, o saco com a roupa da rua na outra mão, a lancheira no outro ombro e o livro que ando a ler na mão. É muita coisa para uma mulher só. Pesam-me as coisas e pesa-me o cansaço de mais um dia que foi gigante. Interminável. Até chegar a casa começa a chover. Corro, mas não o suficiente para não sentir a chuva que cai em catadupas nos meus braços em manga curta, pelos buracos das socas, no cabelo que ganha um novo look "de colado à cabeça" e nas pernas das calças finas que se prendem às pernas.
Chego finalmente à entrada do prédio. Vasculho a mala e lá encontro a chave. Porque será que demoro sempre uma eternidade a encontrar a chave? Fico mais molhada ainda. Mas já não estranho. Sabe-me bem. Gosto de chuva. Sempre gostei. E do cheiro da terra molhada. Vejo o correio. Instintivamente. Por hábito. Só chegam contas, e cada vez menos desde que aderi às facturas electrónicas. E nunca me lembro de ter recebido uma carta pessoal que fosse. Tenho pena. O meu amor podia-me escrever. Mas não escreve!
Subo os primeiros lances da escada e sinto o cheiro a bifes com batatas fritas no rés do chão, deve ter sido o jantar. Chamo o elevador. Espero e oiço o vizinho do primeiro andar falar alto e dizer umas palavras azedas com alguém de voz feminina. A mulher? Finalmente o elevador chega, carrego para o 8º andar. Vivo perto do céu, onde o azul à minha volta quase que se pendura na minha janela e o verde dos montes em redor confere-me paz e liberdade. A vizinha do lado jantou peixe frito com qualquer coisa. Sinto-lhe o cheiro. Não gosto de peixe frito. Não gosto de cheiros a comida.
Pouso a tralha que trago agarrada a mim e dispo-me de imediato. Não me sinto mais leve. Largo a minha segunda pele em formato hospitalar e rendo-me à primeira. Aquela que é apenas minha e de mais ninguém. Ao meu corpo, ao meu cheiro, à minha vida. Abraço o meu corpo. Apetecia-me tanto um cigarro. Eu que deixei de fumar há tantos anos. As lágrimas escorrem-me pela cara abaixo teimosamente. Que raio de dia. Sinto a falta de quem um dia amei mas relembro-me mais uma vez que não posso ficar agarrada ao passado.
Vou tomar duche. O duche ajuda a lavar as lágrimas, mistura-se o sal da água com o sal da vida.
Vou tomar duche. O duche ajuda a lavar as lágrimas, mistura-se o sal da água com o sal da vida.