Chama-se Carla. Senta-se na cadeira da Triagem a soluçar. Lavada em lágrimas não consegue sequer falar. Espero um bocadinho que soluce tudo, que fungue as vezes que precisa e que no fim se acalme. Carla, diga-me lá o que lhe aconteceu? Explica-me que caiu na rua, num buraco. Tem um dos dentes incisivos partido, sangra abundantemente do lábio, cotovelo esfolado com uma ferida de abrasão mas tirando isso não vejo muito mais.
- Carla diga-me o que lhe dói?
- Não me dói nada. Mas dói-me tudo.
espero... que na minha profissão saber esperar é uma virtude e deixa em aberto uma infinidade de acontecimentos.
-Pela primeira vez em 6 anos ia conseguir assistir ao sarau de natação dos meus filhos, nunca pude ir, estava sempre a trabalhar e nunca consegui que o patrão me deixasse sair mais cedo para eu ir lá vê-los apesar de lhe pedinchar e dizer que até compensava as horas noutro dia. Nunca me deixou. Nunca foi possível. Este ano e por razões que a vida ditou, estou desempregada, e pela primeira vez sabia que entre um grande mal eu ia finalmente ter um pequeno bem, poder assistir à festinha dos miúdos. Estava tão feliz, tão feliz mesmo e agora vejo-me aqui no hospital quase sem conseguir falar, sem parte de um dente, cheia de dores na boca e para aqui cheia de sangue... só porque fui parva e caí. Ai que raiva. Não vou conseguir ir assim, não vou para lá assim cheia de dores e sem um dente.
- Quem disse isso? Pois eu digo-lhe que vai e vai mesmo. Primeiro porque os seus filhos não esperam outra coisa da força enorme que a mãe tem, e em segundo porque eu vou já pedir-lhe os exames radiológicos, só por precaução porque não me parece que tenha nada fracturado, limpar e desinfectar essas feridas e fazer aí um penso curativo jeitoso, vai fazer medicação para as dores, e a seguir vai lavar a cara, limpar esse sangue, por uma base, um blush, chamar a si a caixinha da saúde lá de casa, vestir uma roupa limpa e catita, espetar na cara o seu melhor sorriso mesmo sem um bocado de dente e vai à festa e vai mesmo. E no regresso gostava tanto que passasse por cá, só saio às 23 e adorava conhecer esses miúdos olímpicos que nadam num Sarau. Não é um buraco no passeio que a vai afastar de onde sempre quis estar. E acho que no final disto tudo ainda nos vamos rir as duas, que me diz Carla?
Sorriu para mim ainda meio a fungar por entre alguma dor e lágrimas, mas acenou com a cabeça a dizer que sim. No final do dia ainda tive direito à visita de uma mãe babada, com dois putos reguilas pela mão e um alguidar de plástico cheio de ameixas amarelas da horta dos pais.
Acho que nunca aqui disse mas foi pela vontade de curar mais as feridas da alma que as do corpo que escolhi fazer o que faço há anos. Não sei se faço bem, se calhar não, mas juro que faço com vontade e gosto pelo que faço e depois destes anos todos, arrancar um sorriso a quem está magoado e a sofrer é das coisas que mais me enche o coração, e não haverá dinheiro nunquinha na vida que chegue para me pagar isso. Prefiro de longe ser paga com um alguidar de doces ameixas amarelas.
Respect.
ResponderEliminarPOC: Thanks:)))
EliminarPessoas como tu são raras e o teu meio são mesmo uma raridade. (e sei do que falo porque infelizmente já tive a minha dose de hospitais...)
ResponderEliminargata: Olha que não...Vejo humanidade e solidariedade no Grande Trauma, em oncologia e hematologia, e na Neonatologia talvez noutras especialidades menos, porque há menos contacto com o doente. Mas quem segue um doente e o acompanha nos momentos mais dolorosos da sua vida é incapaz de ficar indiferente.
EliminarNo Grande Trauma que é a minha área, a dor é imediata e a nossa capacidade de motivar e agir tem que o ser também, para que resulte.
Fazes bem sim.
ResponderEliminarAs feridas da alma são difíceis de suportar e quase nunca se curam a sós.
Isabel Pires: As feridas da alma custam muito mais a sarar...
EliminarQuerida AC, que post fabuloso! Sinto-me sempre agradecida por contares estas histórias, e que bem o fazes!
ResponderEliminarUm beijinho. E boa continuação desse teu excelente trabalho.
Susana: São pedacinhos dos meus dias. Há alguns tão tristes e de tanto insucesso que os guardo para mim... nem tudo são rosas, ou neste caso nem tudo são ameixas.
EliminarObrigada:))
Beijinho*
Olá AC
ResponderEliminaré por estas e por outras que gosto de si e acho que bem podia ter uma segunda profissão escrevendo para um público mais vasto
parabéns pelo texto e por saber contar uma boa história
beijos do joaquim
Joaquim: Não tenho tempo nem para manter o blog como gostaria, e para visitar quem gosto nesta Blogocoisa quanto mais para escrever a sério... isto são histórias contadas a correr, sem pretensões de estilo literário ou conteúdo. São pedaços. retalhos da vida de uma enfermeira.
EliminarBeijinho e obrigada pela enorme simpatia
Acredito piamente que essas devem ser as melhores ameixas amarelas do mundo!
ResponderEliminar:)
C. N. Gil: E foram...reparti com os meus colegas de equipa e desapareceram num ápice. Ando com o alguidar no carro para se a doente aparecer eu lho devolver.
Eliminar:)))
AC por essa linda atitude eu também lhe oferecia um frasquinho de compota de ameixas amarelas...já as colhi todas! :))
ResponderEliminarBC: E o que eu adoro compota caseira...não me fazia rogada. Não há nada melhor que uma bela compota feita por quem sabe e sem aditivos nem químicos de conservação.
EliminarLindo lindo.... as vezes é tão bom ajudar alguém a ver as coisas por outro prisma.
ResponderEliminarPetra: Costumo dizer que o bem que fazemos volta para nós próprios. Ver retribuir um sorriso, ou um pequeno gesto, é das coisas que mais me fascina. E ainda há tanta gente neste mundo capaz de dizer obrigada ou de sorrir...
EliminarBeijinho menina Petra. Saudades tuas.
Eu também de dava um alguidar de fruta :( ....
ResponderEliminarSuperSónica: Oh miúda acelerada, super mamã, fizeste-me sorrir pah:)))
EliminarO que me faz acreditar em dias melhores é saber que ainda pessoas, desculpe quis escrever PESSOAS GRANDES como voçê!
ResponderEliminarbeijinho enorme....e pf continue assim
Autora de Sonhos: Acredito mesmo que dentro da área da saúde há muita gente a dar o melhor de si... a fazer omeletes sem ovos e a combater impossíveis. Muitos e muitos por aí.
EliminarBeijinho*
Isto porque já tive a minha filha mais velha nos cuidados intensivos, no grande trauma, e cá para nós quem me valeu foram profissionais como voçê, porque houve dias que, confesso, julguei que fosse morrer de dor de alma. Gosto de si! Bjoka
ResponderEliminarAutora de Sonhos: Ter alguém que amamos muito internado seja porque motivo for é uma sensação de dor, impotência, confusão, raiva... tudo misturado, tudo muito difícil de suportar e entender.
Eliminar:)))
Olá minha querida :D
ResponderEliminarNão sabes se fazes bem??? É o que fazes melhor!!!!
Já viste que fizeste a diferença no dia da Carla?
Bastava uma, mas haverá tantas Carlas por aí...
Gosto de ti. Gosto de ti assim.
Um abraço daqui até aí. <3
Dear Daisy: Também tenho dias menos bons, não de má disposição porque nunca levo problemas pessoais para o trabalho. Nunca! Mas tenho dias de cansaço extremo, vontade de baixar os braços e desistir, de me alhear do que me rodeia e refugiar-me no meu mundo dos sonhos onde me sinto tão bem...
EliminarNos dias que faço a diferença, fico com a sensação de dever cumprido. Cheguei onde era preciso.
Gosto de ti miúda Daisy.
:)))
AC, tens de explicar à malta que quem faz o contrário de ti, na mesma profissão, não é mau profissional. Apenas pode ter deixado de querer levar na mala que vai até casa, as dores dos pacientes que atende todos os dias no sitio onde os atende. Não é mal, é apenas outra forma de ajudar.
ResponderEliminarEu nem quero imaginar as dores que assumem por conta de pacientes...
Son da Mamã: Nunca aqui disse isso, nem penso isso. Cada um é como é. Eu não levo trabalho para casa - esta expressão é minha, nem deixo que as dores dos outros sejam as minhas, e acredita que isto pode ser considerado frieza, egoísmo... No trabalho tento estar atenta e dar o melhor de mim, fora dali é mala ao ombro, dois assobios e fecho a aporta que atrás vem gente. mal eu estaria se trouxesse para casa a doença dos outros com tantos anos de profissão já estava em depressão crónica ou maluquinha de todo.
EliminarSão estes posts cheios de histórias que a mim me fazem acreditar na bondade das pessoas :) que tenhas sempre essa capacidade de ajudar os outros AC, mesmo nas situações mais difíceis!
ResponderEliminarUm beijo enorme ♡
Blanche Cerise: Sou pessoa para transmitir força, fazer sorrir, sou capaz de um gesto de carinho mas é preciso também que "o outro" seja receptivo e acima de tudo tenha vontade de ser ajudado.
EliminarBeijo enorme
Olá, AC
ResponderEliminarNão é preciso dizer que saiu-lhe aqui um texto magnífico, porque isso já houve quem dissesse. Mas, pronto! também eu digo.
Mas, para além do texto, bem para lá, por trás dele está um ser magnífico num trabalho difícil, que é esse de fazer o curativo de almas.
Li o relato de um fôlego, e me emocionei literalmente a sentir-me na pele da Carla, porque sei o que é estar do outro lado numa urgência e, sei bem o que é ser uma mãe que quer e luta contra um universo que parece só saber por entraves à vida duma mulher. Daí, seu papel nessa história ter sido algo equiparado a um anjo sem asas ;)
Está, com certeza, no lugarzinho certo.
E, arrematar a história com um alguidar de ameixas amarelas é maravilhoso.
bj amg
Carmen Grinheiro: Obrigada pela enorme simpatia. Às vezes é só preciso um pequenino empurrão para os outros encontrarem o lugar que procuram. Não fiz grande coisa...mostrei o caminho e dei o empurrão, o resto, o verdadeiro mérito é da Carla desta história que soube dar a volta a um dia que podia ter sido muito infeliz e afinal foi só um bocadinho infeliz.
EliminarBeijinho
Como eu adoro ler-te pah miúda!
ResponderEliminarBeijo assim repenicado na bochecha
Sil Maria: Saudades tuas miúda...mas leio te feliz e isso é tudo.
EliminarBeijinho gigante.