Ontem um amigo enviou-me uma sms com a pergunta da praxe e a afirmação óbvia, as duas já minhas conhecidas de outros carnavais. Estás no hospital? Preciso de ti. Liguei-lhe de imediato para tentar perceber o que se passava e dar uma ajuda dentro do possível. Um amigo dele tinha tido um acidente grave, tinha entrado na urgência trazido pelo INEM e ele queria saber o estado do amigo e os desenvolvimentos do caso. Disse-lhe a unidade onde estava o amigo, que já tinha sido intervencionado de urgência pela Vascular e pela Ortopedia em consequência de uma fractura exposta, que aparentemente estava bem e estável, mas que prognósticos era como no futebol, só no fim do jogo, e muita coisa ainda podia acontecer. Rematei que se quisesse dar um salto e ver o amigo conseguia levá-lo lá para lhe dar um olá rápido visto que ele estava consciente e eu estava de serviço o dia todo, por isso bastava dar-me um toque e aparecer.
Apareceu mesmo, mas quando apareceu eu tinha acabado uma Reanimação. Foi um dia complicado. Um dia daqueles que meteu passarolas que caíram dos céus, gente em muito mau estado, mais gente ainda à minha volta, importante. Cenas e coisas. Estava envolta em trabalho, numa sala cheia de gente, socas sujas de sangue, rabo de cavalo despenteado, farripas de cabelo na testa, cabelo ensopado em suor, fato de circulação manchado de qualquer coisa que prefiro omitir porque não tenho interesse em que vomitem enquanto me lêem, e rodeada de colegas em igual estado de desalinho e mau aspecto. Não é sempre mas às vezes acontece.
Aproximei-me dele sem trocar o beijinho habitual de cumprimento e disse-lhe: Não te encostes a mim, tenho que ir mudar de farda. Olhou para mim de cima a baixo como que a tirar-me as medidas, deu dois passos atrás com aquela sua maneira de menino beto giro e bem comportado por detrás do fatinho impecável acompanhado da gravata, franziu o nariz enojado e disse com um ar muito sério e compenetrado: Quando apareceste nem te conhecia, nem pareces tu, não te imaginava fardada assim, não te imagino com esse cabelo bonito sem ser solto e arranjado, e rematou olhando-me para os pés - nem te imaginava sequer com esses horríveis crocs. Essa coisa é horrível.
Desatei a rir. Pois... imaginas aquilo que não existe disse-lhe meia envergonhada pelo meu aspecto. Espera aí, volto já. Enquanto fui trocar de fato circulação, compor o cabelo, e dar um jeito à cara a ver se ficava mais compostinha e cheirosa entrou na Emergência um sinistrado coberto de lama e sangue. À porta da sala de Trauma a mulher dele com uma barrigona enorme de grávida chorava desalmadamente pelo marido que tinha tido um acidente de mota. A minha colega "Cabriolet"- a alcunha Cabriolet tem mesmo a ver com o facto dela adorar andar descapotável, arejadinha, tentava sentá-la numa cadeira e acalmá-la. No chão a maca dos bombeiros tinha deixado um rasto de folhas, ramos, bocados de relva, estilhaços de vidro e pedaços do que outrora parece ter sido roupa. Ouviam-se os gritos dele dentro da sala. O cenário não era bonito de se ver.
Quando regressei junto dele ouvi algo inesperado. Dez minutos aqui e deu para perceber a tua realidade, só agora entendo a tua forma de vida, a maneira como achas que tudo se esgota num dia, a tua incapacidade para pensar a longo prazo e equacionar o futuro, o teu riso fácil, a tua superficialidade constante, alguma insanidade, confesso que era incapaz de fazer o que tu fazes, isto é uma realidade demasiado dura, feia e mal cheirosa. Aqui a vida desenrola-se no fio da navalha.
Não falei. Apenas sorri, dei-lhe o braço.
Vamos lá ver o teu amigo, anda.