terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Quando pensamos que já vimos tudo, há sempre algo fantástico para nos surpreender. E sim, acredito em super heróis...



Muitos doentes que nos chegam vêm de outros hospitais, encaminhados da área de residência porque falta no hospital da área de uma qualquer especialidade médica essencial para o tipo de traumatismo em causa. Se por um mero acaso os doentes estão conscientes, colaborantes, orientados são transportados em ambulâncias não medicalizadas, acompanhadas por um motorista e um ajudante, quase assim como se fossem de autocarro mas em vez de sentadas, deitadinhas, pronto só um bocadinho mais confortáveis. Até porque há ambulâncias por ai a circular que exigem coragem para entrar nelas e juro que devem ter perdido peças pelo caminho tal o aspecto com que chegam ao destino. 

A acompanhar o doente vem uma carta fechada que é aberta na sala dos médicos pelo chefe de equipa. Nós recebemos o paciente e iniciamos os procedimentos. Chama-se Patrícia tem 30 anos e chega deitada numa maca, sofreu um traumatismo dos ossos próprios do nariz, vem de Beja com diagnóstico feito para internamento pela especialidade de Maxilo Facial e posterior alinhamento do septo nasal no Bloco Operatório, não é muito, mas é o essencial e é tudo quanto sei. 

Digo boa noite, apresento-me, explico-lhe sumariamente os procedimentos que vamos efectuar e dou-lhe uma bata hospitalar para a mão. Olha para mim e a primeira coisa que me diz é - podia ajudar-me a despir? Isto assim deitada é complicado. Ok, penso uma coisa qualquer meio desagradável que evidentemente não verbalizo e começo por despir a doente. A doente lá vai ajudando como pode e quando o processo está metade concluído, e só na metade de cima, digo-lhe... agora pode levantar-se e passar para esta cama por favor.

Não posso... sou paraplégica. Assim do nada, como se o céu desabasse em cima de mim. Olho com olhos de ver e apercebo-me do saco de urina preso com uma fita de nastro à perna bem escondido por baixo da perna das calças, notando-se apenas muito discretamente pelo volume, reparo no posicionamento das tibio tarsicas dentro dos ténis em flexão plantar, reparo na perda de massa muscular nas coxas. Porra... Grande merda. Começo por pedir desculpa, justifico-me dizendo o óbvio - que não tinha reparado que tinha dificuldades motoras, e ela interrompe-me num rasgado sorriso... ainda bem, fico feliz, a ideia é mesmo essa, fazer-vos pensar que sou calona e que quero mesmo é criados... e riu-se.
Bolas, foi mesmo o que pensei. 

Acabámos a conversar e ela a contar-me toda a sua história. Mais uma entre muitas histórias de vida. Que teve um acidente de carro com o marido, que ele morreu no acidente, que ela teve sorte, (palavras dela) e ficou "só" assim e que a vida faz-se continuando. Estava apostada em ser autónoma e em continuar a viver. Vivia sozinha na casa que era dos dois, não tinha empregada, e fazia tudo, mas mesmo tudo sozinha... desde tomar banho, a limpar a casa, estender roupa ou passar a ferro... e eu de queixos caídos e meia aparvalhada ia ouvindo tudo e fazendo perguntas idiotas. E então as compras como faz? On line respondia ela. E não trabalha? A casa ficou paga, tenho uma pensão pelo acidente e ainda aguardo a indemnização da seguradora, para mim chega. Dá para as minhas coisas e para ir ao teatro ou a um concerto. E eu continuava sem fôlego feita atrasada mental... ao teatro sozinha?

Há pessoas que por si só dispensam adjectivos, pela força, pela capacidade de darem a volta por cima a tudo o que lhes acontece, por nunca abdicarem de sorrir, por encontrarem em pequenos nadas o imenso que precisam para sobreviver. Super heróis portanto!

21 comentários:

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    1. Tétisq: Há pessoas que têm uma capacidade de sobrevivência gigante.

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  2. Porra...é o que eu digo, conheces cada história...e sabes do que me lembrei, da música que me fez arrepiar e chorar logo pela manhã (faz sempre),"Somewhere only we know" dos Keane porque continuo a teimar que o mais importante são as coisas simples da vida e nunca dá-las por garantidas. É à vista dos super heróis que nos apresentas aqui que ficamos pequeninos e insignificantes.

    Bom dia "Piquena":)

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    1. Suricate: Não tenho dúvidas que são as coisas mais simples e que à partida podem até ser as mais insignificantes que mais importantes são e melhor nos fazem. Gosto da simplicidade das coisas simples e gosto do prazer de bons momentos. Acho que mais simples que isso não há.

      Beijinho Suri

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  3. Ou eu sou bruxa ou tu já tinhas contado esta história. Mas, seja como seja, é uma lição de vida. Eu não sei se, na mesma situação que ela, teria essa força e essa coragem...

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    1. gata: Já tinha sim. Em 2012. Há muito tempo. Volta e meia vou ao baú das memórias buscar estórias e volto a publicá-las.

      São estórias de coragem verdadeiros ensinamentos de vida. Uma grande lição.

      Beijinho enorme :))

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    2. Pronto, não sou bruxa... tenho é boa memória! :-)
      Turrinhas! :-)

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    3. Gata: Dizem que os gatos têm 7 vidas, agora ficámos a saber que também têm boa memória.

      Turrinhas :))

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  4. Não percebi a tua estranheza pelo "ir ao teatro sozinha". Tantas vezes que já fui sozinho ao cinema, por exemplo.

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    1. Jedi Master Atomic: Não me percebeste. Eu também já fui ao cinema montes de vezes sozinha, e ao teatro. O que eu quis dizer é que para uma pessoa paraplégica ir sozinha ao cinema ou ao teatro é uma barreira difícil de transpor. Como se desloca? Quem a ajuda a subir escadas? (já que a maioria dos cinemas têm escadas de acesso ao interior) a minha estranheza residia nestes factos.

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    2. Allo AC!
      Informo que a Patrícia, em Beja pode fazer isso, o pouco que temos até tem algumas condições, é mais complicado a deslocação para o local, ou seja para o Pax-Júlia (único e belíssimo Cine-Teatro que temos).
      Já me devo ter cruzado com a Patricia, sem saber quem ela é, e já devemos ter visto espectáculos lado a lado, fico sempre na ultima fila ao lado do espaço destinado as cadeiras de rodas.
      Sem duvida é uma grande estória de vida, como há tantas por ai e nos por vezes nem damos conta. A vida por vezes prega partidas, resta ao ser humano decidir se quer continuar a viver ou resignar-se. E uma lição de vida para nós comuns mortais que não damos por vezes valor a coisas que consideramos básica.
      Beja é como tantas outras cidades é um verdadeiro caus em barreiras arquitectónicas. Existe legislação que não se cumpre e mentalidades que pensam que nunca irão estar com mobilidade condicionada.
      Leio e continuo a ler este blog, passando quase todos os dias para ver as novidade, raramente comento, mas hoje tive que comentar :)
      Em Beja não temos muito mas temos alguma coisa, nomeadamente bons profissionais no SNS que não tem condições de trabalho dignas, nem clientes que percebam que eles tem de comer, tem vida e tem família e que turnos de 18h não são perâ doce.
      Bjinho grande AC e continua esta partilha, que eu continuarei a seguir :)

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    3. MDuarte: Cada vez mais as estruturas para fins públicos estão adaptadas a pessoas com incapacidades. Acho muitíssimo bem, para quem perdeu a capacidade de andar perder também a autonomia e independência totais seria o golpe final.


      Obrigada pela simpatia nas tuas palavras. São registos do meu dia a dia num hospital. Coisas simples mas que me tocam. Ainda hoje sou capaz de rir ou chorar com estas pequenas coisas que são tanto.

      Beijinho*

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  5. Realmente. E queixamo-nos nós de termos coisas para fazer em casa :\

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    1. Desabafista: Queixamo-nos de barriga cheia. Na grande maioria das vezes nem damos por quão sortudos somos.

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  6. AC, a tua escrita é mágica. Não deixes de partilhar as tuas emoções com quem te lê pois consegues deixar-nos a todos um pouco melhor. Também eu sou totalmente viciada na neve e nem uma rotura total do LCA há uns anos me fez desistir. Desejo que encontres sempre o teu caminho e que nunca te falte a coragem para te reergueres. Bjs Isabel F.

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    1. Isabel F: Adoro neve, sou completamente fã, todos os anos tenho feito progressos mas confesso que tenho medo de me magoar ou ter uma lesão grave. As lesões do ligamento cruzado anterior são tramadas de curar, em muitas é necessário fazer uma artroscopia do joelho que implica uma ida ao Bloco operatório, anestesia e etc...o período de recuperação é lento e quase sempre doloroso.
      Estou a caminhar lentamente no bom sentido... vamos ver o que a vida me traz.

      :))

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    2. Sim A.C. fiz isso tudo, artroscopia e 7 meses de fisioterapia e muito dor. Mas a vertigem de descer uma pista que nos desafia, o convivio com os outros malucos como nós, o ver a montanha em toda a sua rude beleza, tudo isto faz valer a pena. Fazer ski é comparável a viver: há momentos de puro terror e outros de indescritivel felicidade, há dias de sol e dias de tempestade; mas no fim de contas o que fica é o que se viveu, o que se superou e o que se tentou superar. Desejo-te uma boa neve e uma boa vida. :-)

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    3. Isabel fernandes: Yheahhhhhhhh.... Viver, ser feliz, desfrutar, esquecer tudo. Na montanha sou eu, o frio e o silêncio e a vontade de esquiar.

      Vou amanhã. Volto daqui a uma semana.

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  7. Rick Forrestal: Pieces of a nurse day's life.

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  8. Que história incrível, que lição de vida se leva com o que aqui (tão bem) contaste! Obrigada, querida AC.
    Parabéns pelo teu tão belo trabalho.
    E um beijinho.

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    1. Susana Rodrigues: A maioria de nós quando reclama, reclama de quê? Há vidas que são de verdadeiros super heróis.
      Obrigada pela simpatia.

      Beijinho:))

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.