Muitos doentes que nos chegam vêm de outros hospitais, encaminhados da área de residência porque falta no hospital da área de uma qualquer especialidade médica essencial para o tipo de traumatismo em causa. Se por um mero acaso os doentes estão conscientes, colaborantes, orientados são transportados em ambulâncias não medicalizadas, acompanhadas por um motorista e um ajudante, quase assim como se fossem de autocarro mas em vez de sentadas, deitadinhas, pronto só um bocadinho mais confortáveis. Até porque há ambulâncias por ai a circular que exigem coragem para entrar nelas e juro que devem ter perdido peças pelo caminho tal o aspecto com que chegam ao destino.
A acompanhar o doente vem uma carta fechada que é aberta na sala dos médicos pelo chefe de equipa. Nós recebemos o paciente e iniciamos os procedimentos. Chama-se Patrícia tem 30 anos e chega deitada numa maca, sofreu um traumatismo dos ossos próprios do nariz, vem de Beja com diagnóstico feito para internamento pela especialidade de Maxilo Facial e posterior alinhamento do septo nasal no Bloco Operatório, não é muito, mas é o essencial e é tudo quanto sei.
Digo boa noite, apresento-me, explico-lhe sumariamente os procedimentos que vamos efectuar e dou-lhe uma bata hospitalar para a mão. Olha para mim e a primeira coisa que me diz é - podia ajudar-me a despir? Isto assim deitada é complicado. Ok, penso uma coisa qualquer meio desagradável que evidentemente não verbalizo e começo por despir a doente. A doente lá vai ajudando como pode e quando o processo está metade concluído, e só na metade de cima, digo-lhe... agora pode levantar-se e passar para esta cama por favor.
Não posso... sou paraplégica. Assim do nada, como se o céu desabasse em cima de mim. Olho com olhos de ver e apercebo-me do saco de urina preso com uma fita de nastro à perna bem escondido por baixo da perna das calças, notando-se apenas muito discretamente pelo volume, reparo no posicionamento das tibio tarsicas dentro dos ténis em flexão plantar, reparo na perda de massa muscular nas coxas. Porra... Grande merda. Começo por pedir desculpa, justifico-me dizendo o óbvio - que não tinha reparado que tinha dificuldades motoras, e ela interrompe-me num rasgado sorriso... ainda bem, fico feliz, a ideia é mesmo essa, fazer-vos pensar que sou calona e que quero mesmo é criados... e riu-se.
Bolas, foi mesmo o que pensei.
Acabámos a conversar e ela a contar-me toda a sua história. Mais uma entre muitas histórias de vida. Que teve um acidente de carro com o marido, que ele morreu no acidente, que ela teve sorte, (palavras dela) e ficou "só" assim e que a vida faz-se continuando. Estava apostada em ser autónoma e em continuar a viver. Vivia sozinha na casa que era dos dois, não tinha empregada, e fazia tudo, mas mesmo tudo sozinha... desde tomar banho, a limpar a casa, estender roupa ou passar a ferro... e eu de queixos caídos e meia aparvalhada ia ouvindo tudo e fazendo perguntas idiotas. E então as compras como faz? On line respondia ela. E não trabalha? A casa ficou paga, tenho uma pensão pelo acidente e ainda aguardo a indemnização da seguradora, para mim chega. Dá para as minhas coisas e para ir ao teatro ou a um concerto. E eu continuava sem fôlego feita atrasada mental... ao teatro sozinha?
Há pessoas que por si só dispensam adjectivos, pela força, pela capacidade de darem a volta por cima a tudo o que lhes acontece, por nunca abdicarem de sorrir, por encontrarem em pequenos nadas o imenso que precisam para sobreviver. Super heróis portanto!