sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay...





Não acredito em bruxas montadas em vassouras, em espíritos de braços abertos que flutuam por cima da minha cabeça ou em fantasmas que atravessam paredes. Sou céptica, muito terra a terra e os domínios do transcendente e de tudo o que é oculto, não palpável e visível causam-me alguma confusão. Mas volta e meia a vida prega-me uma partida, e aquilo que eu dava como certo, inquestionável, de um momento para o outro evapora-se, e tudo se altera.

No meu hospital existem pessoas doentes que habitam por lá. Habitar de viver, isso mesmo. Na saída de turno oferecemos sempre as nossas ceias a quem não tem nada que comer, e que faz de uma caixa com um pacote de leite simples, um queijo triângulo e um pão com manteiga, a refeição do dia. Temos conhecidos que vemos mesmo todos os dias, dos quais sabemos os nomes, as antigas profissões, alguns pormenores da família e até as razões porque se encontram sozinhos e abandonados.

O ti Joaquim, como carinhosamente tratamos o sr Joaquim, é nosso paciente há vários anos, tem centenas de episódios de urgência e vive por ali, uns dias fica internado e tem direito a uma cama, lençóis limpos, comida, banho, noutros não fica internado, mas tem cuidados médicos e dormita por lá num banco corrido, tudo com direito a alguma comida e um tecto.

A noite passada o ti Joaquim voltou a ser internado, muito debilitado, com uma tosse horrível de muitos anos de dependência tabágica, excessivamente magro, com diversas patologias associadas, entre elas uma tuberculose pulmonar que nunca lhe deu tréguas, cheio de feridas nunca tratadas e infectadas, e repleto de sujidade.

Nesta noite o nosso ti Joaquim não comeu o pão da ceia, nem sorveu o leite do pacote como se o espremesse, entrou muito mal, a equipa médica fez o que era humanamente viável, mas devido ao estado avançado da doença e à extrema debilidade, faleceu. Até aqui nada de novo, todos os dias nos morrem doentes, e o ti Joaquim desde há bastante tempo que sofria demasiado. Quero acreditar que para ele foi um alivio. O estranho disto tudo foi o que se seguiu.

...

Nos hospitais faltam sempre camas, numa urgência dura e complicada como a minha existem sempre doentes em macas que aguardam uma vaga para poderem ter o merecido direito a uma cama. Parece igual o termo, maca e cama até porque ambos servem para estar deitado mas na realidade não são. São até muito diferentes, em largura, altura dos colchões, conforto, e no próprio espaço onde são colocadas. Assim na cama do ti Joaquim deitámos um rapaz de 22 anos que tinha sido operado de urgência a uma apendicite aguda, nada de transcendente, o doente estava estável, meio sedado, e em recobro cirúrgico pós-operatório. Eu volta e meia ia vê-lo.

Numa das minhas aproximações o rapaz disse-me baixinho: tire-me daqui, arranje-me outra cama por favor, não consigo sossegar - está aqui um homem velho, sujo, mal cheiroso que não faz senão empurrar-me e dizer que saia daqui que a cama é dele. Comecei por lhe dizer que ele tinha sido anestesiado, ainda estava sobre os efeitos da sedação e que era normal ter períodos de agitação motora, e algumas alucinações, que era tudo normal, que não estranhasse.

Qual não é o meu espanto quando o doente começa a descrever o ti Joaquim.

Está aqui um velho, tem o cabelo todo branco, barba suja e amarelada, dedos castanhos da nicotina, a unha do mindinho grande e porca, e todos os outros detalhes físicos que correspondiam ao ti Joaquim e que era impossível ele saber.
Olhei em volta, espreitei por cima do ombro, tentei ver alguma coisa na penumbra, abri os olhos repetidamente enquanto lhe ouvia a descrição... não vi nada. Agarrei-lhe a mão, falei baixo e sosseguei-o.

Explicar isto não consigo, mas espero que o ti Joaquim não tenha pena da cama que perdeu e encontre lá onde estiver - seja isso onde for - uma cama bem melhor.

8 comentários:

  1. Há coisas que nos abrem os olhos para outras que só nos parecem mentira quando são contadas por outros...
    ...que ele tenha paz!

    :)

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    1. C.N.Gil: Há coisas em que me recuso a acreditar mas explicação para elas juro que não tenho. Ficamos assim....

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  2. Nossa .. até me arrepiei .. mas .. há coisas sem explicação :\

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  3. Caraças, eu dizia-lhe que ia ele e eu dali para fora...medo...

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    1. PM: Há coisas tão estranhas.. nem eu sei o que te dizer.
      Mas foi verdade.

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  4. AC minha enfermeira portuguesa preferida,
    Acredito piamente que o Ti Joaquim ainda está por ai..rs
    Já vi muita coisa nessa vida para acreditar nisso.
    Bjus.

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  5. Andréa Ribeiro: Obrigada pela simpatia.

    Somos energia e até que a energia se dissipe é natural que aconteçam coisas inexplicáveis.

    Bj***

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.