Fim do mês, noite de sexta para sábado, dinheiro fresquinho na carteira, era óbvio que a coisa prometia. Aliás quando saí de casa essa era a certeza, tão certo como dois e dois serem quatro, se é que a esta hora ainda sei somar.
A minha primeira doente na emergência chama-se Inês e fez uma tentativa de suicídio, bailarina profissional, 26 anos, linda de morrer. E quando digo linda de morrer sei o que digo. Com um corpo fantástico e uma cara de anjo, atirou-se de um 2º andar, dizem que por um desgosto de amor... não morreu, mas fez uma rotura do sacro com torção e secção do recto e provavelmente vai passar o resto da vida com incontinência do esfíncter anal e consequentemente de fralda... não sei se há algum amor que valha isso, a perda de uma carreira, a perda de qualidade de vida, o sofrimento associado a tudo isto, mas pelos vistos parece que sim. Cada um sabe de si. Aqui a tentativa ficou-se por isso mesmo.
A segunda doente chama-se Lídia, é anoréctica, bulímica, com 34 anos, 40 quilos de peso, apareceu-nos porque como já não conseguia induzir o vómito com os dedos e depois de muito tentar, resolveu introduzir o cabo de uma colher de salada pela goela abaixo e fez uma lesão grave no esófago com consequente ulceração da coluna aérea e mediastinite pulmonar. Dificuldade respiratória, baixas saturações de oxigénio, paragem cardio respiratória, e anóxia cerebral... agora vai emagrecer os quilos que lhe faltavam para ser esbelta porque só vai ingerir líquidos por uma sonda naso gástrica... e para sempre.
São 3 da manhã, e a noite ainda é uma criança. O meu terceiro doente chama-se Hugo e tem 24 anos, discutiu com a namorada, e num impulso de raiva atirou-se para a linha do comboio. O espectáculo não é bonito, e não me vou alongar muito porque filmes de terror passam na Fox Crime para quem quiser ver, mas entre 7 unidades de concentrado de eritrócitos, 4 unidades de plasma, e mais 3 unidades de sangue completo tentou-se tudo, o sangue conforme entrava esvaía-se em nada, após uma toracotomia na sala de trauma, massagem intra cardíaca, e tudo o que humanamente seria possível, Hugo zero, comboio um. Contas feitas, ganhou o comboio.
Acabou tudo por agora. Finalmente reparo em mim. Tenho as socas nojentas. Pingadas de sangue. Vou tentar arranjar umas de alguém para as substituir. Agarro nas minhas e enfio-as num saco plástico fechado e rotulado com o meu número mecanográfico e envio-as para a desinfecção. Encontro umas do Dr. B. Melão que calça o 46. Gigantes. São mesmo porreiras é o meu número digo (o que é mentira claro). Calço-as decidida e passeio-me pelo serviço assim.
Ponho toda a gente a rir. Além do tamanho das socas que parecem as pás de um remo, ainda dizem melão em letras garrafais de lado.... nice. Diz-me o Duarte: gajinha pareces o Batatoon mas com um grande melão. Rio às gargalhadas e não me importo. Quero rir. Quero não pensar em nada. Agora quero mesmo é algo fantástico. Bem vamos lá sentar um bocadinho e assistir à dose diária de televendas; coisas fantásticas como uma lanterna que é uma bengala, um apanha cenas do chão, um bastão para assaltantes e ainda tem mais a função de afugentar aranhas do tecto, ou umas pantufas chinelos que curam dores, tiram calos, varizes, fazem correr, saltar, e até servem para ir à rua pôr o lixo. Maravilha.
O que eu precisava disto. Nada como às 5 da manhã visionar uma selecção de milagres de qualidade.
Mais uma noite no paraíso.
ResponderEliminarL'Enfant Terrible: Descida mas é aos infernos. Livra. Tenho noites em que só me apetece é desligar do mundo real.
EliminarPor vezes dá para repetir, outras não.
ResponderEliminarOs pequenos dramas da vida, fora das vistas da gente apressada, são o seu verdadeiro esqueleto. E isso é incontornável.
Mais um post com nota alta, AC.
Um bom domingo :)
AC: Há vidas medonhas. Todos os dias dou graças a Deus pela minha. Não é perfeita mas comparado com o que rola perto de mim.
EliminarUma excelente semana
Vinha comentar isso mesmo: dou graças pela vida que tenho sempre que leio certos relatos que fazes aqui...
EliminarBoas folgas ☺ beijinho
Anita: Nem mais
EliminarObrigada:))
Beijinho*
Que noite!! Ao menos terminou a rir e sem melão :)
ResponderEliminarInês: Encontro sempre motivos para rir. É das coisas que mais gosto de fazer.
EliminarE a isto se pode chamar "a sua dose diária de realidade".
ResponderEliminarAs televendas são boas para desligar o cérebro um bocado, há lá com cada cena!
PM: Há lá coisa mais terapêutica do que às 5 da manhã assistir a uma boa dose de ficção e lavagem cerebral. É tão relaxante... então depois de uma noite de mortos e feridos, ui ui
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