terça-feira, 25 de setembro de 2012

Geração Wild Child...


                                                                           
Madalena é jovem, demasiado jovem, e muito bonita, embora lhe reconheça os traços marcados dos excessos. Tem rugas profundas à volta dos olhos, olheiras roxas de cansaço, e olhos encovados das noites mal dormidas. A pele está desidratada, o corpo é demasiado magro, quase anoréctico, enfiado numas calças de ganga justas, slim, e num top curto com brilhantes, com uma estampagem pirosa e uns brilhantes de gosto ainda mais duvidoso. Parece que se usa. A roupa é cara, e de uma marca famosa. Com assinatura. 

Chegou até nós por queda de uma varanda, numa festa hiper chique, numa moradia de um bairro in da cidade. Apresenta traumatismos vários ao nível dos membros inferiores e ligeiras escoriações. Nada de demasiado grave aparentemente. Mas o pior está no resto. Agitada, com arritmias cardíacas, taquicardia extrema, aumento da pressão arterial e da frequência respiratória. As mãos tremem-lhe ligeiramente, Madalena disfarça, e pede insistentemente água. Madalena não podes beber ainda água, espera um pouco, só um bocadinho...

A Madalena não sabe, mas todos nós já percebemos que apresenta sintomas que todos nós bem conhecemos de ingestão de álcool e cocaína, ou metilenodioximetanfetamina / mdma vulgo ecstasy. Caso não se consiga reduzir rapidamente a concentração de alcalóides, a coisa vai ficar feia. Está no limite da linha de não retorno, e a incoerência no discurso e a midriase já visível nas pupilas são um indicador de toxicidade grave.

Este tipo de drogas são chamadas "Party Drugs" porque provocam uma sensação de euforia, bem estar, aumento da sociabilização e extroversão, estado de alerta continuo, aumentam a disposição para o sexo, inibem o sono, e aumentam inclusive a resistência física... Claro que tudo isto apenas durante umas horas, a seguir vêm os momentos psicóticos, alucinógenicos, aumento da temperatura corporal, perda de memória, ataques de pânico, de ansiedade, depressão, náuseas, falta de apetite, vertigens, câimbras, desmaios... e o temível vicio. 

O telemóvel dela em cima da bancada toca incessantemente. Ao som de Katy Perry e California Girls no visor do iPhone vão aparecendo vários nomes que deduzo sejam amigos da Madalena, insistentemente a ligarem, presumo que a querer saber dela, um após outro, mas ninguém atende. Hoje já não há mais parties, nem long drinks, nem dance music, nem bright lights, nem crazy nights, nem best friends forever, nem sniffs, nem linhas, nem pastilhas, nem hard hot sex, nem excessos. Hoje a Madalena não aceita mais convites e vai dormir cedo.

Quando sair do coma, talvez a vida possa voltar ao normal... Talvez.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Como uma boa pronúncia faz toda a diferença...



                                                                             
                                                                                  
Sentada na triagem olho especada para o nome que me aparece em primeiro lugar no monitor. Raios, como é que vou chamar isto. Hesito...preciso chamar o doente, mas o nome é tão estranho que me faz desatar a rir. Leio outra vez, só para ter a certeza que vi bem. Uma só palavra sem apelido, apenas o nome próprio. Fodemane, escrito desta forma.

Leio baixinho Fode Mané, não consigo parar de rir, já tenho apanhado nomes muito estranhos uma Maria das Pernas Tortas, uma Alzira Rata Larguinha, o Sr. Pinote, o Sr. PimPim mas caraças não vou dizer isto em voz alta no altifalante geral de toda a urgência, opto por um sonoro: Sr Mané à triagem. De repente abre-se a cortina e aparece uma alminha de dedo no ar a dizer Fudimani, Fudimani sou eu! Exactamente assim... e eu engulo o riso.

No dia seguinte, e ainda não recuperada de nomes estranhos recebo uma paciente de nome Mohmoh na sala de tratamentos para fazer um injectável, uma senhora muito ansiosa, cheia de tremeliques e o diabo a a quatro e com pavor de agulhas. Começo por falar com ela calmamente e por lhe explicar o procedimento e re béu béu e quando já estou a vias de facto de lhe espetar a agulha no dito cujo, ela mexe-se e eu digo bem alto: Quieta Múmú não mexa! Oiço do outro lado um colega meu dizer:  Múmú é uma vaca!
O que é que estás a fazer a uma vaca?

Pronto aí estraguei tudo, não consegui conter as gargalhadas....
Mas em ambos os casos posso confirmar que a pronúncia faz toda a diferença e que afinal de contas é tudo uma questão de sotaque.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Dias difíceis...




                                                                            
Pois estou nos dias difíceis, esses  mesmo que estão a pensar e nos outros também. Toda a gente sabe que a vida não é fácil, ouvimos toda a gente dizer que isto só piora não melhora, e que a crise vai arruinar a economia e o já miserável país, mas sobretudo a boa disposição e alegria de um povo. Só oiço gente a lamentar-se, só oiço gente zangada, de mal com a vida, em sofrimento pelo que perdeu, pelo que teve e já não tem, pelo que quer ter e não consegue, pela vida difícil que têm.Quase todos reclamam da sorte, aliás da falta dela... e eu não sou excepção, ah pois, eu também.

Hoje falo do Ricardo... O Ricardo é um politraumatizado trazido pelo Inem de uma das praias da nossa costa por traumatismo grave da coluna cervical com possível luxação ao nível de C5-C6 após mergulho de uma rocha, apresenta perda de sensibilidade e deficit motor acentuado dos membros inferiores. Depois de sabermos o diagnóstico de entrada esperámos todos para que o impossível aconteça, o milagre se dê, e o Ricardo não fique Paraplégico, ou pior ainda Tetraplégico.

Tem uns olhos castanhos esverdeados lindos, luminosos, brilhantes, a pele bronzeada da praia por muito sol, demasiado - penso para mim que fujo do sol - tem uns cabelos loiros pelo ombro em total desalinho, vem de calções de banho e traz o cheiro a sal e a mar na pele. Na maca dos bombeiros observo-lhe o olhar doce, meio apavorado de um homem menino que espera o pior deitado num plano duro, imobilizado numa coquille e cheio de dores. Leio-o-lhe o medo, toco-lhe na mão, acompanho o gesto com um sorriso sincero e acrescento.... 
Calma Ricardo, vai correr tudo bem.

Do lado de cá, na consola da tac oiço o veredicto do destino do Ricardo, duro, sem direito a argumentação, sem sequer segunda escolha, ou melhor opção. Separados por um vidro observo os monitores, as linhas coloridas que oscilam num ecrã, e o ar sofrido mas esperançado do Ricardo. E dou por mim perdida em pensamentos de quem reclama de tudo, que vive na insatisfação constante pelo que lhe falta, que tem duas pernas para correr pela praia, saúde para viver, família e amigos para amar, e responde ao habitual: Como vai a vida?
Vamos indo, mais ou menos. 

Para o Ricardo vai ser sempre menos. Todos os dias. E eu que já pouco reclamava da minha vida aprendo mais uma lição, nunca devemos reclamar de barriga cheia, nada é mais importante que a saúde, nada é insubstituível excepto a vida.... e tudo resto são tretas.