quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Quando as nossas dores são maiores que as vossas dores ou quando quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro... coisas.






Ele chama-se Tiago e é médico, interno do complementar de ortopedia. Quarentão, mais para menos que para mais, casado, sei que tem um filho pequeno, 6 anos parece-me. Oiço-o falar do filho várias vezes, das frases giras com que é surpreendido quase todos os dias pelo maravilhoso acto de crescer. Gosto de o ouvir falar, dispõe-me bem, brinca a propósito de quase tudo, e tem um humor acutilante sem ser grosseiro ou parvo. Gosto dele e todas as minhas colegas também. É uma excelente pessoa e sim também é um homem bonito. Eu acho.

Hoje há uma tremenda crise no hospital. Muitos doentes, fruto da gripe. Fruta da época. Pouco pessoal e poucas mãos para tanto doente. Acabámos de receber dois politraumatizados graves com fracturas múltiplas chegados em simultâneo e vitimas do mesmo acidente de viação. É preciso intervir de imediato. O chefe da equipa de ortopedia manda avançar para o bloco operatório o primeiro doente que já se encontra mais ou menos estabilizado. Sobem com ele dois cirurgiões, o primeiro cirurgião ortopedista e o ajudante, dois auxiliares dos transportes e o enfermeiro da unidade de trauma que acompanha a monitorização do doente. 

Passada uma boa meia hora, o chefe de equipa da unidade de trauma manda avançar o segundo doente. O Dr Tiago está de saída, termina o turno às 15 h e é literalmente apanhado na curva. Tens que subir. Veste a bata de novo e põe-te a caminho, vais seguir turno. Preciso de ti. Dito assim mesmo, sem mais explicações, sem adiantar pormenores, sem justificar actos. O Dr. Tiago ainda gagueja, percebi que quer dizer qualquer coisa importante, fica branco, meio suado, gesticula, argumenta mais qualquer coisa sem nexo e no rol de palavras retenho que tem um compromisso importante, mas para o chefe de equipa nenhum argumento é válido. Sou destacada para acompanhar o doente ao bloco. Subimos juntos.

Ainda no elevador enquanto debruçada sobre o doente confirmo a permeabilidade do acesso do catéter na subclávia e dialogo com o anestesista que à cabeceira do doente controla o tubo oro-traqueal, oiço fungar. Raio do ar condicionado, as diferenças de temperatura, as amplitudes térmicas quente-frio dão cabo de todos nós, anda tudo constipado. Saímos do elevador em passo apressado, os auxiliares do transporte empurram com violência a cama, as rodas parecem que vão saltar, e o ruído da estrutura pesada de metal a deslocar-se no mármore do chão faz um barulho ensurdecedor.

Levanto os olhos do doente, os meus olhos cruzam-se com os olhos castanhos do Dr. Tiago, demasiado brilhantes. Olho-o, interrogando-o com o olhar e um ligeiro movimento de cabeça sobre o que se passa. Não responde. Acompanha a cama de braços caídos ao longo do corpo como se lhe pesassem. O eco do deslizar da cama no corredor longo avisa da nossa chegada, a porta automática do bloco operatório abre-se sem ninguém marcar o código de acesso. O doente é recebido pela equipa no Bloco. 

Oiço novamente fungar, olho desta vez directamente para o Dr. Tiago, as lágrimas caem-lhe pela cara abaixo, várias, de seguida. Puxo-o pelo cotovelo. Venha cá, o que se passa consigo? Ai, Enf. AC a minha mulher ia fazer hoje mais um ciclo de quimioterapia e fiquei de a ir buscar porque ela não está em condições de conduzir e afinal vai ter que chamar um táxi e ir sozinha para Alenquer. Nunca consigo cumprir. E no instante que diz isto, soluça que nem uma criança e abraça-se a mim. 

Fiquei sem palavras. Abracei-o só. Com força. Com quanta força tinha. Por uns segundos que pararam tudo ao redor. Sacudi-lhe o cotovelo e disse-lhe: Vá lá ao bloco fazer a sua parte que tenho a certeza que o que está lá em cima vai fazer a dele ao lado da sua mulher. Largou-me. Sorriu-me docemente. E entrou em passadas largas a fungar e a limpar as lágrimas pelo transfer do bloco adentro.

Quero acreditar com muita força que ambos vão cumprir a parte que lhes compete. 
Tiago, perdeste uma batalha mas vais ganhar a tua guerra.

6 comentários:

  1. Era bom que assim fosse... e que a mulher do Tiago encontre forças para, além da luta que trava, compreender a posição dele e saiba perdoar esta falta, que não é culpa dele e muito injusta :(
    Fico a torcer para que ambos cumpram.

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    1. Anita: O Dr Tiago não falhou. Cumpriu a parte dele. Vamos ver se a outra metade da equação faz também a parte dele. O tempo o dirá.

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  2. Também quero acreditar, e tenho fé, que o Tiago irá vencer a sua guerra.
    É verdade que as nossas tragédias são sempre uma banalidade para os outros, ou como dizes "quando as nossas dores são maiores que as vossas dores", é o mundo a usar as lentes que melhor lhe convém.
    abraço,
    Leanor

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    1. Leanor: Quem cuida dos outros muitas vezes deixa em casa carinhos e atenção por dar. Faltas irrecuperáveis.

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.