terça-feira, 12 de maio de 2015

Tira os óculos que vais levar!




Chama-se Isabel. Chega à urgência de cara ensanguentada, nariz meio à banda e um olho todo negro. Já é minha conhecida, já é nossa conhecida. De todos nós. Ensaio educadamente a mesma pergunta de sempre, esperando não ouvir a mesma resposta de sempre.
-  Então Isabel o que a traz por cá? Responde-me a olhar para o colo, sem nunca levantar o olhar para mim. 
-Caí. 
-Então Isabel mas caiu outra vez, ultimamente tem caído todas as sextas feiras, é alguma coisa relacionada com o calendário? Olhe que nem todas as sextas feiras, são sextas feiras treze.

Nada. Silêncio absoluto num rosto comprometido na mentira e envergonhado. Acabo por meter a foice em ceara alheia. Não tenho nada a ver com isso, a vida é sua, mas não quer que acreditemos que cai repetidamente quase todas as sextas feiras pois não? A Isabel é agredida e só depende de si acabar com isso ou não, mas para isso tem que parar de esconder, tem que apresentar queixa na polícia, tem que se mexer e fazer com que algo mude para que de facto possa mudar.

Nada. Silêncio de novo e uma cara de parva estampada como se não percebesse patavina do que lhe quis dizer. Deu-me raiva, detesto gente que se lamenta e não faz nada para mudar o que lhe faz mal. Terminei por ali. Não tenho jeito para dar missa, nem alma de padre e muito menos sou conselheira matrimonial. Peço-lhe Rx da Face e dos Ossos Próprios do Nariz e encaminho-a para a cirurgia que por sua vez a deve despachar de corrida para a cirurgia Maxilo-facial e dali numa viagem à velocidade da luz para casa.

Chamo o doente seguinte ao som, e continuo com o que estava a fazer. O doente seguinte é uma senhora que ao entrar e sentar-se, diz-me de rajada... 
-O que é que a minha vizinha estava cá a fazer? 
- Não lhe posso responder a essa pergunta. Mas aquela doente é sua vizinha?
- Se é. Há anos que oiço pelas paredes a voz do marido quando chega a casa bem bebido a dizer-lhe: Tira os óculos que vais apanhar! Se ela se demora a tirar os óculos - usa uns óculos de lentes grossas, garrafais e sem eles não vê nada - ele insiste aos gritos, ai a merda... tira os óculos que vais levar! E é isto há anos...

E vai continuar a ser assim. Para salvar alguém é imprescindível esse mesmo alguém querer ser salvo. 

25 comentários:

  1. Pobre Isabel ....
    Há uns tempos tb me irritava ver este tipo de situações sem que a vitima fizesse nada. Hoje já percebi que nem sempre se conseguem libertar destes carrascos cobardes. Passaram a ter o meu respeito

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    1. Vadia: Só se pode mudar aquilo que queremos de facto mudar...

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  2. Violência doméstica é um crime público. Tu, eu ou outra pessoa qualquer podem fazer queixa à polícia desse tipo! Inclusive a vizinha!

    E como é que eu sei disto? Já fizeram queixa de mim. Não deu em nada (claro...), mas as despesas do advogado estão lá para o provar!

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    1. Silent Man: É perder tempo... porque quando for interrogada vai negar tudo como fez perante mim. Dei-lhe essa oportunidade e quem omite, nega, esconde é porque não quer sair da situação.

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  3. Lamentável ao ponto que dois seres humanos chegam, lamentável...

    Mas também há seres como tu, HUMANOS ENORMES :d

    bj

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    1. Casaert: Estar com alguém, partilhar uma casa e uma vida com alguém que nos agride física e psicologicamente é algo que não consigo entender...

      Sou grande em altura... só isso. De resto sou igual ao comum dos mortais.

      Beijinho

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  4. Pois, a triste realidade é essa...

    ...só se pode salvar quem quer ser salvo, fora isso é apenas perda de tempo!

    :)

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    1. C. N. Gil: Entendeste-me... não vale a pena insistir em que apresente queixa na policia porque ela vai negar perante um juiz...

      Beijoooo:)))

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  5. Tão verdade. Tive uma vez uma empregada que de vez em quando aparecia pisada, demorou, mas consegui saber que as pisaduras eram marcas que o marido lhe deixava sempre que lhe punha as mãos...tentei ajudar...e para nosso grande espanto...no dia em que pegamos no telefone para ligar à polícia, não é que se atira (literalmente) aos nossos pés (abraçada às pernas do meu marido?!?!?) "Ó Sr. X não me faça isso que eu amo muito o meu marido" WTF?!?!?!...Nunca mais me meti no assunto. Até hoje não percebo. Se lamento? Lamento, mas não posso fazer nada.

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    1. Suricate: Muitos casos são assim... poucas são as vezes em que a vitima quer mesmo acabar com as agressões... e as razões são muito diversas, ah porque gosto muito dele, ah porque ele é muito bom só fica assim quando bebe um copito, ah porque ele é o sustento da casa, ah porque é o pai dos meus filhos, ah porque um dia ele muda... e tantas e tantas desculpas para se ir adiando...

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  6. Penso que vocês têm autorização para reportar abusos perante as autoridades.
    Não tenho a certeza absoluta disto, mas eu estaria inclinado a dizer que sim.

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    1. Jedi Master Atomic: Ter temos... e em caso de menores é obrigatório fazê-lo...mas aqui ela nem sequer reconhece a agressão... ela diz-nos que cai, seria sempre a minha palavra contra a dela. E toda a gente sabe que isso não resulta.

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  7. Infelizmente uma realidade cruel dos nossos dias...

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    1. Jovem Sonhadora: E presente em todos os estratos sociais... há imensas figuras públicas que são agredidas, algumas já minhas conhecidas.

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  8. É de lamentar o medo com que essas pessoas vivem :(
    Num caso como esse não poderia o próprio hospital apresentar queixa?! Essas pessoas vivem num medo terrível e precisam mesmo que alguém as ajude a dar o primeiro passo, ou mesmo que seja os seus passos...
    Tão triste :'(

    Bjnhs

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    1. Bruna: Poder podia... teria que ser eu enquanto enfermeira na triagem a fazê-lo... e isso tem riscos até para mim. Iria-me expôr, o agressor iria ter acesso aos meus dados pessoais, nome completo, morada etc... e ninguém quer ficar com medo da própria sombra. Nestes casos nunca se sabe com o que se está a lidar pode ser só um bêbado que bebe uns copos e dá pancada na mulher, mas também pode ser alguém muito doente, psicopata e vingativo e eu problemas já tenho os meus, não quero os dos outros.

      Beijinhoooo

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  9. Mas a vizinha pode fazer queixa, qualquer pessoas que saiba pode fazer queixa. Mas se têm medo de represálias pode ser anónima. Vocês enquanto profissionais de saúde não podem fazer queixa?

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    1. SuperSónica: Já respondi quando respondi ao comentário anterior...
      Podemos sim, mas ela diz que cai, cair é muito diferente de se ser agredido, e provar isso ainda mais... e no final de tudo até se pode virar o feitiço contra o feiticeiro e vires a ser julgada por danos morais, difamação e etc... com direito a indemnização ao agressor e tudo... senão conseguires provar do que o acusas.

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  10. A violência doméstica é crime publico. Se o vizinho ouve todas as sextas-feiras as agressões. Se todas as sextas-feiras a desgraçada aí vai, porque raio ainda ninguém apresentou queixa?!

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    1. Anónima: Respondido anteriormente...Não é difícil apresentar queixa, difícil é provar do que vais acusar o agressor se a própria vitima o negar por exemplo em tribunal... e depois como ficas tu? Sabias que podes vira as ser penalizada por uma acusação que não podes provar e que se torna falsa?
      Há riscos... e o risco não compensa. acredita que sei do que falo.

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    2. vir a ser* correcção de erro

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  11. Violência Doméstica é crime público, ou seja, a vizinha ou até vocês no hospital de acordo com o diagnóstico podem apresentar denúncia do caso. Se me recordo de ler por aqui tu até tens uma relação especial com alguém na área policial...

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    1. Fairwind: Expliquei tudinho anteriormente porque ninguém nunca o faz - apresentar queixa quando a própria vitima esconde a agressão.

      Apresentar queixa implica que a vitima corrobore, ou TU faças prova do que acusas alguém se não o conseguires provar vais ter que indemnizar a vitima da TUA queixa por danos morais causados por um falso testemunho...Com a lei não se brinca, E podes ter que vir a pagar uma choruda indemnização.

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  12. Entendo tão bem o que dizes, passam-me pelas mãos pessoas assim, e as desculpas fantabolásticas para desculpar os agressores são no mínimo criatívas... A elas falta auto-estima, auto-confiança, por vezes apoio de familiares e ou uma rede social, e a mim as vezes falta paciência... o que vale é que aos poucos algumas já vão dando o salto.

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    1. Petra: As desculpas que já ouvi umas vezes dão-me só vontade de rir... outras sinto náuseas e vontade de chorar...Uma das mais giras que ouvi foi : ele é tão bom menina, mas tão bom, só me bate quando o Benfica perde, de resto é mesmo bom menina...e eu ri-me, o que é que eu podia fazer? Só mesmo rir-me de gente que consegue viver assim.

      Beijinho Petra

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Diz aí nada ou coisa nenhuma.