Paciente do sexo feminino, 18 anos, consciente, orientada, politraumatizada por acidente de viação, entrada na sala de emergência acompanhada do inem, imobilizada em plano duro, com suspeita de lesões graves na transição dorso lombar por queda de moto 4 com eventual secção de medula. Apresenta fortes queixas a nível lombar, e parestesias acompanhadas de dormência e total perda de sensibilidade nos membros inferiores.
Chama-se Ana e mais qualquer coisa, é linda, tem uns olhos esverdeados da cor da camisola verde água que traz vestida, não sei o que sobressai mais se a camisola ou o seu olhar límpido, perco-me num e noutro tentando definir as cores... Corto a roupa peça a peça, tenho pena da camisola, por baixo vejo um soutien cor de rosa com bonequinhos da Hello Kitty, tão querido, tão infantil, tal como a Ana que faz hoje 18 anos.
A Ana pediu ao irmão que a deixasse conduzir a moto 4, mas ele como rapaz responsável disse-lhe que não, só quando ela tivesse carta de condução, já faltava pouco, e a partir de agora já ia começar as aulas. A Ana insistiu, refilou, barafustou, pressionou, e como bom exemplar feminino que é revirou os olhinhos verdes água, e pediu ao irmão baixinho num ronronar meigo de gatinha kitty para a deixar conduzir só uma vez...
O irmão disse-lhe que não a deixava conduzir, mas pronto que a deixava tirar a moto da garagem, e a Ana com o maior sorriso do mundo, sentou-se em cima da moto, ligou-a, e saiu devagar de marcha atrás, não contou com o ressalto do lancil do passeio, a moto deu um solavanco, a Ana sem pratica desequilibrou-se, e o peso da moto aterrou em cima do corpo dela. O resto Vocês sabem.
Sinto-me triste ao olhar para o corpo de menina deitado à minha frente, tenho dificuldade em lhe explicar todos os procedimentos, canalização de veia, algaliação, terapêutica para lesão medular, e perco-me em recordações. Recordo o dia em que fiz 18 anos e fui acampar para Albufeira com amigos, uma trupe de vagabundos livres dos pais, e como me sentia adulta, maior de idade, com a vida toda para viver, com um mundo por descobrir à minha frente, aventureira, destemida, quase invencível. Aos 18 anos nada nos derruba, não há imprevistos, nem imponderáveis.
Lá fora sentado num cadeirão gasto remendado com adesivo, o irmão chora compulsivamente.De pé amparados por uma ombreira da porta, já que mais nada na vida os ampara... os pais sofrem em silêncio uma dor imensa, só visível no desespero dos seus rostos, na forma como se abraçam um ao outro e entreolham em suplicas, esperando o impossível.
No frágil equilíbrio que é a vida, na ténue linha que separa o que somos hoje e o que seremos daqui a uns breves minutos existem grãos de areia na engrenagem, desvios de rota, ressaltos nos passeios que num segundo alteram tudo, até a forma como passamos a ver o mundo. A partir de agora a Ana vai comemorar todos os aniversários numa cadeira de rodas.