terça-feira, 24 de abril de 2012

Frágil equilíbrio...



                                                                           

Paciente do sexo feminino, 18 anos, consciente, orientada, politraumatizada por acidente de viação, entrada na sala de emergência acompanhada do inem, imobilizada em plano duro, com suspeita de lesões graves na transição dorso lombar por queda de moto 4 com eventual secção de medula. Apresenta fortes queixas a nível lombar, e parestesias acompanhadas de dormência e total perda de sensibilidade nos membros inferiores.

Chama-se Ana e mais qualquer coisa, é linda, tem uns olhos esverdeados da cor da camisola verde água que traz vestida, não sei o que sobressai mais se a camisola ou o seu olhar límpido, perco-me num e noutro tentando definir as cores... Corto a roupa peça a peça, tenho pena da camisola, por baixo vejo um soutien cor de rosa com bonequinhos da Hello Kitty, tão querido, tão infantil, tal como a Ana que faz hoje 18 anos.

A Ana pediu ao irmão que a deixasse conduzir a moto 4, mas ele como rapaz responsável disse-lhe que não, só quando ela tivesse carta de condução, já faltava pouco, e a partir de agora já ia começar as aulas. A Ana insistiu, refilou, barafustou, pressionou, e como bom exemplar feminino que é revirou os olhinhos verdes água, e pediu ao irmão baixinho num ronronar meigo de gatinha kitty para a deixar conduzir só uma vez...

O irmão disse-lhe que não a deixava conduzir, mas pronto que a deixava tirar a moto da garagem, e a Ana com o maior sorriso do mundo, sentou-se em cima da moto, ligou-a, e saiu devagar de marcha atrás, não contou com o ressalto do lancil do passeio, a moto deu um solavanco, a Ana sem pratica desequilibrou-se, e o peso da moto aterrou em cima do corpo dela. O resto Vocês sabem.

Sinto-me triste ao olhar para o corpo de menina deitado à minha frente, tenho dificuldade em lhe explicar todos os procedimentos, canalização de veia, algaliação, terapêutica para lesão medular, e perco-me em recordações. Recordo o dia em que fiz 18 anos e fui acampar para Albufeira com amigos, uma trupe de vagabundos livres dos pais, e como me sentia adulta, maior de idade, com a vida toda para viver, com um mundo por descobrir à minha frente, aventureira, destemida, quase invencível. Aos 18 anos nada nos derruba, não há imprevistos, nem imponderáveis.

Lá fora sentado num cadeirão gasto remendado com adesivo, o irmão chora compulsivamente.De pé amparados por uma ombreira da porta, já que mais nada na vida os ampara... os pais sofrem em silêncio uma dor imensa, só visível no desespero dos seus rostos, na forma como se abraçam um ao outro e entreolham em suplicas, esperando o impossível.

No frágil equilíbrio que é a vida, na ténue linha que separa o que somos hoje e o que seremos daqui a uns breves minutos existem grãos de areia na engrenagem, desvios de rota, ressaltos nos passeios que num segundo alteram tudo, até a forma como passamos a ver o mundo. A partir de agora a Ana vai comemorar todos os aniversários numa cadeira de rodas.

domingo, 15 de abril de 2012

Há coisas que só visto... (ou dispo)



                                                                         

Paciente do sexo masculino, 28 anos, entrado na sala de emergência, vitima de acidente de viação por choque frontal contra um painel outdoor na via pública durante uma perseguição policial, recebido à entrada com sinais vitais estáveis, consciente, orientado, score 15, minimamente colaborante, mas apresentando sinais de dor intensa, e talas imobilizadoras nos dois membros inferiores. Possíveis fracturas cominutivas da tibia e peróneo em ambas as pernas por lesão traumática.

Assim que recebo um doente e se ele se encontra consciente a primeira coisa que faço é perguntar-lhe como se chama, dizer o meu e começar a trata-lo pelo seu nome calmamente, tranquilizando-o dentro do possível e falando em voz baixa e com alguma ternura. Tenho por norma que quem está ferido, encontra-se em ambiente hostil, quase sempre assustado, e sem saber muito bem o que o espera, onde se encontra, e com quem lida...

Chama-se Bruno, tem cara de miúdo, franzino, meio assustado, muito queixoso e explica-me como sofreu o acidente, viajava no lugar do pendura, o colega apenas sofreu escoriações ligeiras nas mãos, é um acidente de trabalho, exige o cumprimento de normas especificas, teste de alcolemia, despistagem de substãncias toxicas e mais eteceteras. 

Explico-lhe os procedimentos e pego na tesoura para lhe começar a cortar a roupa, olha para mim e pede-me por tudo para não lhe cortar a farda, sobretudo o blusão, por favor tente tirar-me a roupa, não ma corte, eu tenho que pagar a farda, é me descontada no salário, insisto, mas tem que ser não há outra hipotese, e alem disso isto é um acidente de trabalho, o seguro deve cobrir este desaire. Não, não cobre...por favor peço-lhe não me corte a roupa, olhe para mim...olhei-o, olhos nos olhos... Sabe, são duzentos euros e esse dinheiro faz-me falta.

Parei para pensar durante alguns segundos e compreendi...há razões que a própria razão desconhece..não sabia que as forças de segurança tinham que pagar as próprias fardas mesmo num acidente de trabalho... o meu fardamento é me dado pela entidade empregadora, e quando tem nódoas que não saiem ou apresenta sinais evidentes de desgaste basta-me ir à secção de rouparia e requisitar um novo.

Fiz um esforço enorme para em conjunto com os meus colegas lhe despir a farda, blusão, camisa, camisola de lycra, com imenso cuidado para lhe proteger a coluna cervical que ainda não estava estudada e podia apresentar lesões graves. Avaliei eventuais traumas da coluna, e fiz aquilo que não podia, me é interdito, e o código de conduta em politraumatizados não permite, mas as regras existem para ser quebradas em prol de uma boa causa, a favor de  muitos Brunos  que nesta vida me protegem, defendem, arriscam a vida por mim, têm familia para sustentar, são extremamente mal pagos, constantemente agredidos e que infelizmente até o fardamento lhes é cobrado.

Porra, life is a bitch....


quinta-feira, 5 de abril de 2012

A perfeição existe e resume-se a uma cama e roupa lavada...


                                                                       
São 4h e 30 da manhã, cansada, meio adormecida, sonolenta, embalada pelo maravilhoso mundo das tele vendas, pelo assoprar do Pedrinho, e pelos ais profundos da Picolé que leva a vida a suspirar, deixo-me ir, devagar, sem pressas, cabeceando e deixando que as pálpebras se fechem num cansaço acumulado que não tem fim, que já não domino e que deixo que me domine.

De repente o som habitual, irritante, já nosso conhecido, que nos faz saltar da letargia, e acelerar o batimento cardíaco..o inconfundível besouro da sala de emergência. Dou um salto, procuro com os pézinhos em meias, em bicos dos pés, as socas arrumadas a um canto, e corro o mais que posso...Eu e todos, ninguém fica estático, ninguém se esquece do seu lugar e da sua função e corremos apressados para salvar uma vida.

Paciente do sexo masculino, 37 anos, nacionalidade estrangeira, emigrante de leste, ferimento profundo no torax por arma branca. Entrado em paragem cardio respiratória, ventilação assistida, entubação oro traqueal, e manipulação de ambu. O cenário é confuso, muita gente, muito sangue...os movimentos respiratórios forçados provocam sangramento em jacto, a equipa de anestesia  e a equipa de cirurgia intervém, uma ocupa-se dos sinais vitais do doente que não existem...a outra tenta estancar a hemorragia, pinçar a artéria e colocar uma drenagem toraccica para expandir o pulmão e permitir a respiração assistida.

Não conseguimos. Após 7 unidades de sangue em curso, um esforço sobre humano para salvar uma vida, e 45 minutos de doente em paragem...o chefe de equipa grita: Fim!! Não se faz mais nada, não há mais hipótese..declaro o óbito. Cansada, suada, o corpo peganhento, as mãos com as articulações doridas, as pernas a fraquejarem, paro 5 segundos e sento-me a um canto da sala num banco alto. 

A nossa volta o caos, o lixo atirado pelo chão, luvas, papeis, embalagens rasgadas, plásticos, sangue, pensos compressivos, ligaduras, gaze, olho para baixo e vejo nas socas pingos de sangue, presa à sola  um enorme coagulo castanho de sangue oxidado, nas meias de riscas sobressaem bolas vermelhas, olho as calças da farda e mais sangue que escorre pela perna direita, sinto-me desconfortável, preciso urgentemente de um banho, de lavar o cheiro a hospital, de tirar de mim o cheiro ferroso do sangue, sinto-me tão suja.

Preciso sair dali, hoje não me apetecia este espectáculo.Hoje queria um mundo diferente, uma realidade melhor, clean, perfumada, sorridente, sem óbitos de preferência, sem lixo e sem sangue. Dizem que Deus existe, nunca o vi, tenho dias que acredito nele, tenho outros como hoje que lamento dizê-lo mas tenho sérias dúvidas... Além disso hoje pareceu-me que se existe só pode ser sádico.