domingo, 26 de fevereiro de 2012

Vendem abraços? Compro dois...


                                                                           

Tive um dia de merda. Trabalhei todo o dia sob um stress danado, e acabei o turno numa ambulância medicalizada aos solavancos pelas ruas esburacadas de Lisboa, em desequilíbrio constante, agoniada pelas curvas e pela trepidação, capaz de vomitar em cima do doente e do médico que me acompanhavam, ou melhor que eu acompanhava.

Para rir só mesmo os nossos diálogos, el doctor, era de nacionalidade cubana falava-me em espanhol, eu falava-lhe em português, e ele respondia-me num sorriso simpático: Non te entiendo, ao que eu repetia o que tinha dito num espanhol macarrónico, mas entendível. Perceptível só mesmo a minha cor cada vez mais amarela, num lindo tom próximo do castanho diarreia, e os vómitos que já não conseguia controlar.

Seguimos todo o caminho aos arremessos na ambulância, (aterrei ao colo dele uma vez) e aos arremessos na língua...ele falava-me em "caderas" "espalda" e eu não via cadeiras, falava-me em rodillas, e eu olhava para as rodas da maca de transporte, "borra tudo"...caraças, porque é que não aprendi espanhol, hoje dava-me jeito, caderas é bacia, rodillas é joelhos...pois...borrar é apagar, desfazer.... não percebia patavina..népia.

Cada vez me sentia pior, queria mudar as seringas no injector e já não via nada, sentia a velocidade debaixo dos pés, os objectos a deslocarem-se à minha volta, e o raio do destino que nunca mais chegava, el doctor hablava, hablava....mas eu desliguei...non te entiendo.
Vou apagar...

Acabei por chegar ao distrital da área de residência do doente, sentada no chão da ambulância, branca como a cal, com a cabeça enfiada dentro de um saco plástico, com um soro com metoclopramida enfiado no braço, e com uma vontade de regressar a Lisboa, num jacto particular, e de preferência sentada numa poltrona vip.

Hoje apetecia-me um chá quente, um abraço imenso de mãe...ou só um abraço.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Dormir sem pressas...


                                                                           
A Maria dormita no cadeirão, meia adormecida, de cabeça apoiada na mão.Tem os olhos fechados mas consegue-se perceber que estão inchados, cheios de papos, por baixo vejo as olheiras fundas, arroxeadas, quase negras. Tem os lábios meios entreabertos, e neles o desenho de um sorriso triste. Apercebo-me que mesmo a dormir, sofre. E eu sofro com ela.

Apresento-vos a rapariga mais teimosa que já conheci. Tem 34 anos, e há vários dias que dorme sentada num quadrado de napa remendado com adesivo hospitalar, duro, meio esquisito, que uns chamam de sofá, outros de cadeirão, ou mesmo de poltrona, mas que a mim me parece só uma cadeira um pouco mais larga, igualmente desconfortável, e com um nome pomposo. Espera por nada, espera por tudo, espera por um milagre, mas não desiste. Numa teimosia doce de quem ama.

O marido da Maria é professor, colocado a 150 quilómetros, sortudo dizem a maioria das pessoas, teve trabalho o que é uma sorte, e mesmo assim não ficou muito longe de casa.Vai e vem para Lisboa todos os dias, numa rotina pesada, dolorosa, de quem sai de casa em madrugadas escuras e regressa ao fim do dia cansado, mas a tempo de cuidar dos filhos, de ajudar nas tarefas domesticas, corrigir testes, e ainda amar a mulher à pressa.

Era sexta-feira, já se sentia o fim de semana, queria chegar mais cedo, saiu ao inicio da tarde rumo a Lisboa, o sol quentinho, a temperatura agradável, a continua extensão de alcatrão em auto estrada junto com o cansaço extremo criaram o sono, e os olhos fecharam-se por um minuto, só um minuto mesmo e o marido da Maria adormeceu. Despistou-se, sofreu um traumatismo craniano grave, e está em coma.

Agora dorme descansado, profundamente, sem pressas, num sono do qual já não acredito que acorde.... 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Gatos pretos e dias de azar...


                                                                           
Mais um mito que cai por terra....

Paciente do sexo masculino, 21 anos de idade, vitima de atropelamento, paragem cardio-respiratória, score 4, entubado no local do acidente por equipa médica do inem, em ventilação mecânica. Politraumatizado, suspeita de traumatismo fechado grave no abdómen, com possível ruptura de víscera oca e amputação traumática visível do 1/3 distal do membro inferior esquerdo. Uma unidade de sangue A+ em curso, gelafundina em perfusão rápida. Depois de tudo o que foi feito no local do acidente o doente entrou na emergência, ventilado e com valores tensionais muito baixos quatro/sete.

Era necessário repor os níveis tensionais, estabilizar o hematócrito, parar as hemorragias ou pelo menos diminui-las para levar o doente até ao bloco operatório...mas não foi possível. Cada vez a tensão arterial era mais baixa, as hemorragias continuas. Corremos e corremos, arriscámos, pedimos mais sangue, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito unidades de sangue...sim, quase continuas, em fluxo rápido e nada, zero. Doente em choque hipovolêmico. Tudo correu mal...nada resultou.

Tinha comigo interiorizada a teoria que um eléctrico é uma coisa lenta, chateia de morte de tão devagar que anda, que magoa mas não mata. Morre-se numa moto a 150 km à hora, morre-se num despiste de automóvel, quando se cai à linha de comboio na esperança de não se perder este que o próximo pode demorar. Agora correr para o eléctrico, cair e ser atropelado por ele em andamento, a 10 km à hora é ridículo, não faz sentido, e cabe naquela margem de azar, das coisas que de tão impossíveis de acontecer só acontecem mesmo aos outros.

Quando era mais novita e ainda estudava, corri vezes sem conta para apanhar o eléctrico, uma vez a descer em andamento, estatelei-me e esfolei os joelhos...pelos vistos tive sorte.
Hoje caiu por terra mais uma teoria minha, frágil, idiota e assente em pressupostos errados...os eléctricos afinal também matam..