Fim de semana...
A sala de emergência nunca parou, vários doentes entrados e várias transferências recebidas de outros hospitais. Mais trabalho do que é normal devido a muitas urgências do país sobrelotadas. Hoje o meu mundo girou à volta dos olhos azuis mais límpidos e brilhantes que vi. Sou fascinada por olhos azuis. (e verdes a cor de olhos do rapaz do meu coração). Recebemos uma vitima de atropelamento do sexo masculino, 26 anos. Atropelado por um autocarro quando se dirigia para a faculdade.
Score 10 à entrada, sonolento, prostrado, com sinal evidentes de dor, fractura cominutiva do fémur direito, possível fractura dos arcos costais à direita, abdómen tenso e distendido, escoriações várias nos membros superiores e na face, deformação com eventual fractura dos ossos próprios do nariz. De resto, respondia a ordens simples, falava baixo mas de forma audível e expressava-se com coerência e sentido. Perfeitamente consciente e orientado no espaço e no tempo.
Falou-me que ia para a faculdade, disse-me o que estava a estudar, em que ano estava, com o olhar indicou-me o telemóvel, e sussurrou-me em voz muito baixa o nome da namorada. Procure aí "Amor", ela chama-se Tânia, ligue-lhe por favor, ela vai ficar à minha espera no sitio do costume, pensa que eu me atrasei, por favor ligue-lhe. Não quero que ela fique à minha espera, ela não vai desistir de esperar por mim, e eu não vou poder ir... ligue-lhe por favor.
Distraí-me alguns minutos, remexi nos bolsos do blusão à procura do telemóvel, desbloqueei-o, olhei o ecrã e procurei a lista de contactos. E de repente oiço o meu colega Pedro gritar: Paragem... chamem a anestesia. Paragem! Atirei com o telemóvel, corri a bipar a equipa de anestesia, puxámos o carro de emergência, começamos de imediato manobras de reanimação cardio respiratória e todo o suporte básico de vida e a equipa de cirurgia adiantou o suporte avançado de vida começando o processo de entubação oro-traqueal e de reequilíbrio hemodinamico.
Vinte minutos depois...
A linha de ecg continuava isoeléctrica, os batimentos cardíacos mantinham-se em 26 durante a estimulação cardíaca, para chegarem a zero no momento de pausa. Todos tentávamos salvar o rapaz que tinha os olhos azuis e queria ser engenheiro. Insistimos mais meia hora com desfibrilhador activo, várias tentativas feitas, diversas atropinas, duas delas intra cardíacas. A linha cardiaca continuava isoeléctrica, recta, sem apresentar sinais vitais. Oxímetria muito baixa, batimentos cardíacos nulos, tensão arterial 4, ausente. Olhámos uns para os outros. De repente o chefe de equipa disse - Parar, declaro o óbito às 11h 23m. Já não adianta continuar, tem lesões cerebrais irreversíveis por anóxia cerebral e as hipóteses de sobrevivência não existem. Fim. E de imediato retirou as luvas e atirou-as para o chão. Eu suava, a farda colava-se-me às costas, sentia o cabelo molhado junto ao pescoço, as mãos doíam-me e tinha os dedos inchados, desci do degrau da ressuscitação. Pelo chão roupa dele cortada à tesoura, tropecei nuns ténis de marca, olhei-lhe de relance a carteira e o telemóvel, baixei-me e apanhei uma sebenta de engenharia, molhada, suja, encardida de lama, quase ilegível, dizia qualquer coisa que não percebi bem mas que tinha a ver com resistência de materiais.
Comecei a afastar-me dali. De relance olhei mais uma vez o rapaz que de olhos abertos me mostrava os olhos azuis mais lindos que vi até hoje, já menos brilhantes mas igualmente belos. Hoje o autocarro do rapaz dos olhos azuis passou às 11h e 23m, para qualquer um de nós pode estar na próxima paragem e passar para nos apanhar mesmo que não queiramos entrar. Todos sabemos isso.
Aproveitem a vida. Em qualquer cidade, a toda a hora passam autocarros.