sábado, 28 de janeiro de 2017

Insanidade...



E ainda, que essa coisa, o amor, fosse complicada demais para compreender e detalhar nas maneiras tortuosas como acontece, naquele momento em que acontecia dentro do sonho, era simples.
Boa, fácil, assim era. 
Ela gostava de estar com ele. 
Ele gostava de estar com ela.
E isso era tudo.

Caio Fernando Abreu




Percebes finalmente que é amor... 

quando ele te diz repetidamente adoro-te miúda, Seguido de... deixa-me aprender a gostar de alguém. Nunca soube amar ninguém. Não sei demonstrar afecto, não sei dar, não sei partilhar e tenho dificuldade em confiar. Dá-me tempo. O teu tempo.

E tu não consegues dizer nada. Sentes só naquele preciso instante uma sensação de felicidade imensa. E decides continuar a tentar.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Quando as nossas dores são maiores que as vossas dores ou quando quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro... coisas.






Ele chama-se Tiago e é médico, interno do complementar de ortopedia. Quarentão, mais para menos que para mais, casado, sei que tem um filho pequeno, 6 anos parece-me. Oiço-o falar do filho várias vezes, das frases giras com que é surpreendido quase todos os dias pelo maravilhoso acto de crescer. Gosto de o ouvir falar, dispõe-me bem, brinca a propósito de quase tudo, e tem um humor acutilante sem ser grosseiro ou parvo. Gosto dele e todas as minhas colegas também. É uma excelente pessoa e sim também é um homem bonito. Eu acho.

Hoje há uma tremenda crise no hospital. Muitos doentes, fruto da gripe. Fruta da época. Pouco pessoal e poucas mãos para tanto doente. Acabámos de receber dois politraumatizados graves com fracturas múltiplas chegados em simultâneo e vitimas do mesmo acidente de viação. É preciso intervir de imediato. O chefe da equipa de ortopedia manda avançar para o bloco operatório o primeiro doente que já se encontra mais ou menos estabilizado. Sobem com ele dois cirurgiões, o primeiro cirurgião ortopedista e o ajudante, dois auxiliares dos transportes e o enfermeiro da unidade de trauma que acompanha a monitorização do doente. 

Passada uma boa meia hora, o chefe de equipa da unidade de trauma manda avançar o segundo doente. O Dr Tiago está de saída, termina o turno às 15 h e é literalmente apanhado na curva. Tens que subir. Veste a bata de novo e põe-te a caminho, vais seguir turno. Preciso de ti. Dito assim mesmo, sem mais explicações, sem adiantar pormenores, sem justificar actos. O Dr. Tiago ainda gagueja, percebi que quer dizer qualquer coisa importante, fica branco, meio suado, gesticula, argumenta mais qualquer coisa sem nexo e no rol de palavras retenho que tem um compromisso importante, mas para o chefe de equipa nenhum argumento é válido. Sou destacada para acompanhar o doente ao bloco. Subimos juntos.

Ainda no elevador enquanto debruçada sobre o doente confirmo a permeabilidade do acesso do catéter na subclávia e dialogo com o anestesista que à cabeceira do doente controla o tubo oro-traqueal, oiço fungar. Raio do ar condicionado, as diferenças de temperatura, as amplitudes térmicas quente-frio dão cabo de todos nós, anda tudo constipado. Saímos do elevador em passo apressado, os auxiliares do transporte empurram com violência a cama, as rodas parecem que vão saltar, e o ruído da estrutura pesada de metal a deslocar-se no mármore do chão faz um barulho ensurdecedor.

Levanto os olhos do doente, os meus olhos cruzam-se com os olhos castanhos do Dr. Tiago, demasiado brilhantes. Olho-o, interrogando-o com o olhar e um ligeiro movimento de cabeça sobre o que se passa. Não responde. Acompanha a cama de braços caídos ao longo do corpo como se lhe pesassem. O eco do deslizar da cama no corredor longo avisa da nossa chegada, a porta automática do bloco operatório abre-se sem ninguém marcar o código de acesso. O doente é recebido pela equipa no Bloco. 

Oiço novamente fungar, olho desta vez directamente para o Dr. Tiago, as lágrimas caem-lhe pela cara abaixo, várias, de seguida. Puxo-o pelo cotovelo. Venha cá, o que se passa consigo? Ai, Enf. AC a minha mulher ia fazer hoje mais um ciclo de quimioterapia e fiquei de a ir buscar porque ela não está em condições de conduzir e afinal vai ter que chamar um táxi e ir sozinha para Alenquer. Nunca consigo cumprir. E no instante que diz isto, soluça que nem uma criança e abraça-se a mim. 

Fiquei sem palavras. Abracei-o só. Com força. Com quanta força tinha. Por uns segundos que pararam tudo ao redor. Sacudi-lhe o cotovelo e disse-lhe: Vá lá ao bloco fazer a sua parte que tenho a certeza que o que está lá em cima vai fazer a dele ao lado da sua mulher. Largou-me. Sorriu-me docemente. E entrou em passadas largas a fungar e a limpar as lágrimas pelo transfer do bloco adentro.

Quero acreditar com muita força que ambos vão cumprir a parte que lhes compete. 
Tiago, perdeste uma batalha mas vais ganhar a tua guerra.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Balanço destes solavancos em alto mar...




A maneira como mastiga não me irrita. Come de boca fechada, não mete os dedos no nariz, não tira lanche dos dentes e não coça as partes baixas. Porreiro, já não é mau. Mas com muita pena minha só estes itens não chegam para que a viagem se faça sem sobressaltos.

Há muita coisa nele que me cativa mas reconheço que tem de haver boa vontade de parte a parte para ajustar pequenos detalhes que não funcionam, mas estar junto é para isso mesmo, namorar serve para isso. Continuamos a tentar embora a cada dia que nasce mais me parece que estamos condenados ao fracasso. Se resultar ok, se não resultar a vida continua. Nenhum de nós tem nada a perder, não somos casados, não temos filhos, não temos contas a pagar juntos, cada um tem a sua vida, o seu trabalho e a sua casa... por isso tirando perder o amor, não há nada mais a perder.

Perco a alma. Eu pela vida fora já perdi tanto, tantas pessoas, amores que um dia amei de verdade, que seguro-me presa a uma tábua de salvação - estilhaços flutuantes de um barco em naufrágio - com um medo terrível de me afogar. E rezo ao Deus das Tormentas que me salve da intempérie, amaine a tempestade e me faça encontrar um porto seguro onde me abrigar. Estou perdida, molhada, insatisfeita, totalmente à deriva, mais insegura que nunca. Agarro-me aos destroços.

Continuo a lutar. E a afogar-me?

Voltei a pegar num, dois três cigarros depois de 6 anos sem fumar.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Que fizeste o fim de semana passado AC?



Tanta coisa que não caberia nas margens de um texto. Cantei todas as minhas músicas, olhei nos olhos, passeei, fui a sítios onde ainda não tinha ido, escorreguei no gelo, trilhei um bocadinho da minha montanha de sonho, abracei, beijei, chorei, amei o mais que pude, dei o melhor de mim, dei o que tinha e o que não tinha.

Perdi, ganhei, perdi de novo. 
Vivi, e sem medo de nada... viveria tudo de novo.



Serra de Gredos
 


Vale Glaciar - Laguna Grande gelada
Temperatura -4 graus


Madrid



Madrid  - Av. do Palácio Real



Jardim do Bom Retiro- Palácio de Cristal
Madrid 

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Muitas arestas por limar...





Enquanto houver estrada para andar
a gente vai continuar...

Jorge Palma


Estive ausente. De férias. 7 dias apenas mas que me souberam pela vida. Desta vez a viagem foi até Madrid com passagem por Mérida, Cárceres, Ávila, e após a estadia em Madrid ainda um dia na Serra de Gredos com direito a muito frio, temperaturas negativas, muita neve e um trilho de cortar a respiração. A paisagem ajudou à boa disposição, a natureza deu uma forcinha pelo bem estar, e o prazer de estar de férias e o descanso sem horas nem compromissos ou obrigações do que fazer ou onde estar, ajudaram no resto.

Mas... e de facto há sempre um mas... 

Continuam a haver muitas arestas por limar, muitos pequenos atritos em duas pessoas que se seguram para não desistir, duas pessoas que estão a dar o melhor de si para continuarem a navegar nas mesmas aguas mas que em comum têm de facto muito pouco, excepto a alegria de viver e de conhecer e a vontade genuína de estarem juntos - e isso é única e exclusivamente o que me move. Dizem que os opostos se atraem, talvez... começo a acreditar nisso. Entre nós, eu e o matraquilho azul nada é linear, simples, fluido, ao correr do momento e dos dias. Tudo é demasiado complexo. E pelo facto de ser tão complexo ele retira-me toda a energia que é muito minha e uma das minhas características enquanto eu AC. Saio esgotada de qualquer fim de semana, de o mover comigo, de o arrastar nas minhas aventuras, de o trazer para o meu mundo (onde ele se sente tão bem depois de lá estar). Ele não tem mundo, tem o trabalho, vive em exclusivo para ele, tem alguma família que visita regularmente, e exceptuando isso tudo muito pouco resta. Não tem hobbies, não se dedica a nada em particular, não tem interesse especial por nada, tem camaradas de trabalho que considera amigos e regra geral tudo tanto lhe faz... Pois...

É assim em tudo. Sexo incluído. Esse é aliás outro dos pontos onde os ponteiros não acertam, não há ritmo, nem sintonia, nem motivação, nem dedicação, direi até talvez e sem o risco de ser injusta, que nem interesse. Esse mundo passa-lhe um pouco ao lado. Passa sem. E a coisa para ele resolve-se rapidamente sem grandes floreados ou pinos e cambalhotas e desde que se resolva, está resolvido e está-se bem. Eu já não sou assim, preciso de mais, mais nós, mais momentos, mais interesse, mais tempo, mais inovação e motivação e a coisa está a dar-se sem desejo o que para mim é terrível e faz muito pouco sentido. Mas continuo a tentar. Não sou pessoa de desistir. E gostava de conseguir ser feliz, já que ele diz que é imensamente feliz e se sente bem. Algumas coisas melhoraram, já me ajudou a transportar a mala, ou já me deu a mão quando foi preciso içar-me para cima de um rochedo, já tem por hábito abrir-me as portas e deixar passar em primeiro, já reparte pequenas coisas e acarinha-me com pequenos gestos, já fala mais dele e da família, já confia assuntos e segredos importantes de trabalho, já procura ter mais tempo para mim. Mas tudo demora muito tempo e eu não sei se tenho assim tanto tempo para dar.

Continuamos nesta estrada. A limar arestas desde Setembro de 2016.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

O autocarro das 11h23m...




Fim de semana...

A sala de emergência nunca parou, vários doentes entrados e várias transferências recebidas de outros hospitais. Mais trabalho do que é normal devido a muitas urgências do país sobrelotadas. Hoje o meu mundo girou à volta dos olhos azuis mais límpidos e brilhantes que vi. Sou fascinada por olhos azuis. (e verdes a cor de olhos do rapaz do meu coração). Recebemos uma vitima de atropelamento do sexo masculino, 26 anos. Atropelado por um autocarro quando se dirigia para a faculdade.

Score 10 à entrada, sonolento, prostrado, com sinal evidentes de dor, fractura cominutiva do fémur direito, possível fractura dos arcos costais à direita, abdómen tenso e distendido, escoriações várias nos membros superiores e na face, deformação com eventual fractura dos ossos próprios do nariz. De resto, respondia a ordens simples, falava baixo mas de forma audível e expressava-se com coerência e sentido. Perfeitamente consciente e orientado no espaço e no tempo.

Falou-me que ia para a faculdade, disse-me o que estava a estudar, em que ano estava, com o olhar indicou-me o telemóvel, e sussurrou-me em voz muito baixa o nome da namorada. Procure aí "Amor", ela chama-se Tânia, ligue-lhe por favor, ela vai ficar à minha espera no sitio do costume, pensa que eu me atrasei, por favor ligue-lhe. Não quero que ela fique à minha espera, ela não vai desistir de esperar por mim, e eu não vou poder ir... ligue-lhe por favor.

Distraí-me alguns minutos, remexi nos bolsos do blusão à procura do telemóvel, desbloqueei-o, olhei o ecrã e procurei a lista de contactos. E de repente oiço o meu colega Pedro gritar: Paragem... chamem a anestesia. Paragem! Atirei com o telemóvel, corri a bipar a equipa de anestesia, puxámos o carro de emergência, começamos de imediato manobras de reanimação cardio respiratória e todo o suporte básico de vida e a equipa de cirurgia adiantou o suporte avançado de vida começando o processo de entubação oro-traqueal e de reequilíbrio hemodinamico.

Vinte minutos depois...
 
A linha de ecg continuava isoeléctrica, os batimentos cardíacos mantinham-se em 26 durante a estimulação cardíaca, para chegarem a zero no momento de pausa. Todos tentávamos salvar o rapaz que tinha os olhos azuis e queria ser engenheiro. Insistimos mais meia hora com desfibrilhador activo, várias tentativas feitas, diversas atropinas, duas delas intra cardíacas. A linha cardiaca continuava isoeléctrica, recta, sem apresentar sinais vitais. Oxímetria muito baixa, batimentos cardíacos nulos, tensão arterial 4, ausente. Olhámos uns para os outros. De repente o chefe de equipa disse - Parar, declaro o óbito às 11h 23m. Já não adianta continuar, tem lesões cerebrais irreversíveis por anóxia cerebral e as hipóteses de sobrevivência não existem. Fim. E de imediato retirou as luvas e atirou-as para o chão. Eu suava, a farda colava-se-me às costas, sentia o cabelo molhado junto ao pescoço, as mãos doíam-me e tinha os dedos inchados, desci do degrau da ressuscitação. Pelo chão roupa dele cortada à tesoura, tropecei nuns ténis de marca, olhei-lhe de relance a carteira e o telemóvel, baixei-me e apanhei uma sebenta de engenharia, molhada, suja, encardida de lama, quase ilegível, dizia qualquer coisa que não percebi bem mas que tinha a ver com resistência de materiais.

Comecei a afastar-me dali. De relance olhei mais uma vez o rapaz que de olhos abertos me mostrava os olhos azuis mais lindos que vi até hoje, já menos brilhantes mas igualmente belos. Hoje o autocarro do rapaz dos olhos azuis passou às 11h e 23m, para qualquer um de nós pode estar na próxima paragem e passar para nos apanhar mesmo que não queiramos entrar. Todos sabemos isso.

Aproveitem a vida. Em qualquer cidade, a toda a hora passam autocarros.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Corpos...




Procurar-te-ei até te encontrar.
Mesmo que só te encontre em corpos.
Onde tu não estás.

Herberto Helder

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Deixar acontecer...






Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande, é a sua sensibilidade sem tamanho.

Martha Medeiros



Quando o ano começa há sempre um renovar de objectivos. Há quem queira ficar mais magro, fazer mais exercício, deixar de fumar, ler mais, aprender mais qualquer coisa ou sei lá mais o quê. Eu tenho como objectivo deixar de querer controlar o destino. O meu e o de quem me acompanha.

Parece uma coisa estranha mas eu gosto de planear a minha vida, saber com antecedência o que vou fazer no próximo fim de semana, ou já em Março, ou o que vou fazer no feriado tal de Junho - marcado e agendado - ou onde vou nas férias de Verão. Planeio tudo exaustivamente e habituei-me a isso ao longo dos anos em que pelos imensos acasos da vida fui conjugando folgas e turnos e mais turnos, e aproveitando de forma meticulosa todo o pouco tempo disponível não restando margem para desperdício. 

Este ano pediram-me para planear menos e deixar mais a vida acontecer. Planear é algo que está enraizado em mim, que faz parte do meu eu e nem sempre é fácil cedermos um pouco de nós. Disseram-me esquece a organização, os ínfimos detalhes, deixa-te ir ao sabor da viagem. Prometi tentar. Vamos ver se consigo. 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Fim de ano diferente, amanhecer diferente...





Do meu fim de ano não existem fotos. Nem uma para contar como foi. Não tive tempo de as tirar. Não fui capaz de suspender o momento para fotografar. Foi um fim de ano mágico. Fiz piscinas para trás e para a frente repartida entre a Serra de Sintra onde estavam todos os meus amigos, a melhor sangria de frutos vermelhos do mundo, o jogo das cadeiras, as macacadas do Tiago, as gargalhadas à volta da fogueira... e outro local do outro lado do rio onde num sitio inacessível se encontrava de serviço a outra metade da minha vida. Há quatro anos que ele passa a noite de fim de ano a trabalhar, em Op e este ano resolvi estar presente à meia noite e passar com ele. Subimos a um local no alto do mundo onde existe um castelo, local com uma vista deslumbrante, só nós e as luzes da cidade ao fundo, o rio à volta a espalhar magia. Levei flutes, espumante, passas, morangos e comemorámos os dois. Sozinhos. Sem vivalma à volta. A beijarmo-nos à meia noite enquanto mil luzes de fogo de artificio brilhavam ao longe em dezenas de pontos da cidade. E depois ainda houve tempo para que o ambiente fizesse acontecer entrarmos no novo ano da melhor forma possível. Inesquecível.

Já tarde, ele regressou onde era suposto estar e nunca ter saído e eu regressei ao local onde me aguardavam os meus amigos. E a noite continuou igual a si a mesma como era suposto ser para cada um de nós em diferentes pontos da cidade - até de manhã.

 Para o ano logo se vê como vai ser.