Tenho à minha frente o Tiago, tem 28 anos e é páraquedista de profissão e instrutor de saltos nas horas vagas. Salta porque gosta, porque quer, porque adora aventura e já não vive sem a adrenalina dos saltos. Nunca pára, faz escalada, faz rappel invertido à séria porque o normal é para meninos, faz Bungee Jumping, parapente e dá umas aulas sobre tudo isto numa escola de desportos radicais.
Hoje algo correu mal, não me perguntem o quê que percebo peva de pára-quedas e parapente e afins, aliás qualquer coisa que voe mais alto que dois metros do solo para mim é suicídio Voar é para as aves, ou de uma forma mais sofisticada e tecnológica para os aviões, todas as outras formas de altos voos intimidam-me.
O Tiago chegou de helitransporte, apresenta fracturas múltiplas de ambas as pernas, fractura da bacia, da coluna lombar ao nível de L1, hemorragias internas, hemotórax e rotura de uma víscera oca. O prognóstico é muito reservado, insistimos, persistimos e não desistimos. Não pares Tiago. Drenagem torácica bilateral, punção abdominal positiva, colocação de catéter venoso central, linha arterial, e mais...e mais... Não pares Tiago.
De repente a frequência cardíaca baixa, os valores tensionais descem a valores limite e o que não queríamos mesmo acontece. Puxo com o pé o degrau da reanimação, debruço-me no tórax do Tiago, não morras, caraças não te atrevas...um, dois, três, quatro, cinco, pausa, e uma vez e outra vez, dezenas de vezes. Dói -me tanto os braços, as articulações dos punhos, os cotovelos, os ombros, preciso parar e não posso parar.
Grito pelo Pedro e peço-lhe que me substitua, tudo isto dito num agora é a tua vez, mostra para que servem esses músculos.Tenho os braços do cotovelo para baixo dormentes, os dedos inchados, a roupa interior colada ao corpo, a farda ensopada de suor nas costas, sinto o cheiro do meu corpo, cheiro mal...
Muito tempo depois, muito esforço depois, tudo foi em vão. Podia dizer muita coisa, podia dizer que no fim de hora e meia nisto e sem resultados, todos estávamos cansados e com os olhos cheios de lágrimas.Porque parece fácil ao longo dos anos, eu pelo menos acreditava que sim, que o tempo e o hábito me iam dando traquejo e maior capacidade para lidar com os insucessos e as adversidades, mas não é verdade.
Não gosto de perder ninguém. Não gosto de perder quem tem 28 anos e uma vida pela frente. Não gosto de perder quem ama a vida, e não gosto quando o destino me prega partidas. Deste dia eliminei tudo, guardo apenas uma recordação boa, o telefonema na hora certa de alguém muito atarefado, submerso em papéis importantes que percebeu nas entrelinhas de duas sms trocadas que eu não estava bem e perdeu meia hora da sua vida para me ligar, ouvir os meus soluços, e confortar com palavras de ânimo.
Em pleno caos a amizade pode ter o efeito borboleta, causar um tufão e fazer renascer vida do outro lado do mundo...