segunda-feira, 2 de julho de 2012

A amizade e o efeito borboleta...


                                                                           

Tenho à minha frente o Tiago, tem 28 anos e é páraquedista de profissão e instrutor de saltos nas horas vagas. Salta porque gosta, porque quer, porque adora aventura e já não vive sem a adrenalina dos saltos. Nunca pára, faz escalada, faz rappel invertido à séria porque o normal é para meninos, faz Bungee Jumping, parapente e dá umas aulas sobre tudo isto numa escola de desportos radicais.

Hoje algo correu mal, não me perguntem o quê que percebo peva de pára-quedas e parapente e afins, aliás qualquer coisa que voe mais alto que dois metros do solo para mim é suicídio Voar é para as aves, ou de uma forma mais sofisticada e tecnológica para os aviões, todas as outras formas de altos voos intimidam-me.

O Tiago chegou de helitransporte, apresenta fracturas múltiplas de ambas as pernas, fractura da bacia, da coluna lombar ao nível de L1, hemorragias internas, hemotórax e rotura de uma víscera oca. O prognóstico é muito reservado, insistimos, persistimos e não desistimos. Não pares Tiago. Drenagem torácica bilateral, punção abdominal positiva, colocação de catéter venoso central, linha arterial, e mais...e mais... Não pares Tiago.

De repente a frequência cardíaca baixa, os valores tensionais descem a valores limite e o que não queríamos mesmo acontece. Puxo com o pé o degrau da reanimação, debruço-me no tórax do Tiago, não morras, caraças não te atrevas...um, dois, três, quatro, cinco, pausa, e uma vez e outra vez, dezenas de vezes. Dói -me tanto os braços, as articulações dos punhos, os cotovelos, os ombros, preciso parar e não posso parar.

Grito pelo Pedro e peço-lhe que me substitua, tudo isto dito num agora é a tua vez, mostra para que servem esses músculos.Tenho os braços do cotovelo para baixo dormentes, os dedos inchados, a roupa interior colada ao corpo, a farda ensopada de suor nas costas, sinto o cheiro do meu corpo, cheiro mal...

Muito tempo depois, muito esforço depois, tudo foi em vão. Podia dizer muita coisa, podia dizer que no fim de hora e meia nisto e sem resultados, todos estávamos cansados e com os olhos cheios de lágrimas.Porque parece fácil ao longo dos anos, eu pelo menos acreditava que sim, que o tempo e o hábito me iam dando traquejo e maior capacidade para lidar com os insucessos e as adversidades, mas não é verdade.

Não gosto de perder ninguém. Não gosto de perder quem tem 28 anos e uma vida pela frente. Não gosto de perder quem ama a vida, e não gosto quando o destino me prega partidas. Deste dia eliminei tudo, guardo apenas uma recordação boa, o telefonema na hora certa de alguém muito atarefado, submerso em papéis importantes que percebeu nas entrelinhas de duas sms trocadas que eu não estava bem e perdeu meia hora da sua vida para me ligar, ouvir os meus soluços, e confortar com palavras de ânimo.

Em pleno caos a amizade pode ter o efeito borboleta, causar um tufão e fazer renascer vida do outro lado do mundo...

domingo, 1 de julho de 2012

A relatividade das coisas...



                                                                         
A Joana tem 19 anos, é meia destravada, alheada de tudo, importa-se pouco com os estudos, vive para as amigas, as saídas, os gajos que vão aparecendo e que ela curte nas paixões que surgem. Mas é acima de tudo uma miúda gira, de riso fácil e parece-me muito feliz.

Hoje teve um azar...

Caiu numa escada e entrou na emergência trazida pelo Inem, num plano duro, colar cervical e com o membro superior direito imobilizado numa tala improvisada no local. Está consciente, orientada, muito queixosa, mas acima de tudo muito ansiosa. Vou falando com ela, sou boa conversadora e adoro conhecer  um pouco quem cuido e ir brincando com questões óbvias, perguntando-lhe coisas pessoais e tentando de uma assentada distraí-la dos procedimentos e reduzindo-lhe a ansiedade. Após o protocolo de radiogramas em politraumatizados e bipada a ortopedia, chegou-se a uma conclusão.

Uma merda e terrível conclusão... que nos deixa a todos sem palavras, revoltados, e mais uma vez a pensar que a vida é madrasta e fodida... 
As dores fortíssimas que tem no braço não são consequência de nenhuma fractura provocada pelo trauma directo da queda, mas sim de um trauma numa zona fragilizada por um osteosarcoma, um temível tumor ósseo que é muito frequente em adultos jovens em idade de crescimento.

Fico sem ar, olho para a Joana que deitada numa maca me falava ainda há pouco dos dois rapazes giros da turma, da sua paixão pelo surf, e da raiva que tem à matemática e à física, ou o medo dos exames nacionais. E como me fez rir em sonoras gargalhadas quando imitou a professora de matemática a resolver exercícios no quadro e a debitar formulas, falando sem parar e sem sequer parar para respirar... 

Uma mãe levanta-se de manhã preocupada porque vai perder o autocarro, ou que tem que descongelar bifes para o jantar e depois acaba nas urgências hospitalares com a vida de pernas para o ar, e a cabeça ao contrário. Na vida tudo é relativo, o que de manhã nos parecia um problema complexo e de terrível solução, de tarde adquire a importância do absolutamente ridículo...

Na vida nem tudo tem verdadeira importância, vamos aprender a relativizar as coisas. Vamos simplificar, ignorar o que é relativo...